Pela segunda vez vejo Pá de Cal (Ray-lux), peça de Jô Bilac, com direção e argumento de Paulo Verlings, depois de uma pandemia inteira. A peça foi a última que vi antes de tudo fechar, inclusive o CCBB-RJ, onde estreou, lá nos idos de março de 2020, quando todos achavam que em 15 dias voltaríamos ao normal (eu não achava que seriam quinze dias, mas, quem sabe, um mês?). A peça teve de entrar em quarentena na sequência imediata de sua estreia, assim como todo o teatro, toda a cultura presencial, todos os que puderam trabalhar remotamente.
Reencontrar a peça, melhor do que era à época, talvez um pouco mais enxuta, foi uma gratíssima surpresa e, confesso, me emocionou ver a alegria dos atores nos agradecimentos ao público. Sim, sobrevivemos, sabe-se lá como e certamente aos muitos trancos e excessivos barrancos, à pandemia, cada qual com a sua dor, cada qual com a sua perda.
A peça se passa em um velório em torno de um suicídio, em que as cinzas do morto estão em uma urna belíssima. Pessoas se reencontram, pessoas se conhecem, há inclusive um momento em que é encenada, brevemente, uma sessão de constelação familiar, dado que um dos personagens é terapeuta e a carta de despedida do filho pede, como desejo último, que façam uma constelação, uma vez que são muitos os problemas da família.
Apesar de um velório, de morte, de tensões, há muitos momentos engraçados, e a riqueza do espetáculo, agora, a meu ver, sem reler o que escrevi há dois anos, é justamente essa confusão de línguas que leva a vários mal-entendidos e evidencia preconceitos e estereótipos. Todos e todas, sem exceção, têm estereótipos e se dão conta disso. São os melhores momentos da peça. A mulher influencer que acha que o antigo colega preto sabe a diferença entre “axé” e “saravá”, claramente por ser preto, embora isso não seja dito; o próprio homem preto que, ao conhecer uma francesa negra, diz que imaginou que ela fosse diferente, ou seja, seu fenótipo talvez não corresponda àquilo que ele imaginou de pessoas francesas, porém isso também fica pairando nas entrelinhas do texto; o homem preto que acha que a colega influencer, por ter 35 anos e não ter tido filhos (até o momento) estar desesperada para ser mãe, entre vários outros que vão se mostrando.
Foto de Paula Kossatz
O problema da peça, que permanece, embora tenha melhorado nessa versão atualizada, é um excesso de informações que acaba sendo desnecessária e que cansa, pois nós, o respeitável público, ainda tentamos entender o enredo, entender a trama, que, no caso de Pá de Cal, não é fácil de compreender, uma vez que as relações entre os personagens não são nada óbvias. Isso exige um trabalho mental que tudo bem, não fosse o fato de outras exigências desnecessárias.
Um exemplo é a personagem francesa, que fala em francês enquanto uma legenda é projetada no cenário. Ora, ainda que ela seja francesa e não saber falar português tenha permitido bons momentos relativos aos estereótipos mencionados aqui, talvez pudesse ser menor sua participação falando ou talvez ela pudesse mesclar o francês e o português, ou qualquer outra coisa que diminua a necessidade de ler legenda e comparar o que ela fala com o que está escrito, para aqueles que eventualmente tenham noção de francês. Por outro lado, o fato de os personagens se chamarem Eva, Lilith e por aí vai acaba despertando um indagação sobre os motivos desses nomes que, a meu juízo e na falta de algum melhor, também são excessivos e não fazem diferença. Fica uma impressão de que é muita vontade de mostrar conteúdo quando a peça já o tem, sem precisar de todo um esforço que desemboca em todo um cansaço por parte do espectador.
Foto de Paula Kossatz
Fiquei me perguntando um bom tempo sobre o motivo do nome Pá de Cal (Ray-lux) e até nisso a coisa é excessivamente complicada. Segundo release, a expressão significa “fazer uma última referência a um assunto não prazeroso”, o que de fato acontece na trama, sobretudo ao final, com o gesto do pai face à carta do filho. Por outro lado, Ray-lux, ainda segundo o mesmo release, refere-se ao “nome de uma urna funerária tão cara quanto o valor de um automóvel”. Sinceramente, apesar de ser interessante o significado a que o título refere, isso sequer aparece na peça, ou, se aparece, não ganha destaque a ponto de ser notado, e fica tudo, repito, mais complexo do que seria necessário. Lembro que, da primeira vez que vi a peça, saí exausta mentalmente. Agora isso não aconteceu, ou porque algo foi enxugado e funcionou melhor, ou talvez por eu estar vendo pela segunda vez e já entender parte do que se passa, e também pelo fato de ter compreendido que o mais importante ali não é a trama, ou pelo menos o que eu julguei mais importante tenha sido outra coisa: as evidências dos preconceitos e estereótipos apressados que todos e todas fazemos o tempo inteiro, automaticamente.
A peça, que celebra 15 anos da Cia Teatro Independente, segue em cartaz no Teatro Laura Alvim, em Ipanema, até meados de setembro.
Ficha técnica
Dramaturgia: Jô Bilac
Direção: Paulo Verlings
Diretora Assistente: Mariah Valeiras
Elenco: Carolina Pismel, Isaac Bernat, Kênia Bárbara, Orlando Caldeira e Pedro Henrique França
Cenário: Mina Quental
Figurinos: Karen Brusttolin
Iluminação: Ana Luzia Molinari de Simoni
Trilha Sonora: Rodrigo Marçal e João Mello
Direção de Movimento: Toni Rodrigues
Visagismo: Rafael Fernandez
Assessoria de Imprensa: Ney Motta
Programação Visual: André Senna
Fotos de Divulgação: Antônio Fernandes
Direção de Produção: Jéssica Santiago
Argumento e Idealização: Paulo Verlings
Realização: Teatro Independente e 9 Meses Produções
Serviço
Espetáculo: “Pá de Cal (Ray-lux)”
Local: Casa de Cultura Laura Alvim
Av. Vieira Souto, 176, Ipanema, Rio de Janeiro
Estreia em 26 de agosto de 2022.
Temporada: 26 de agosto até 18 de setembro, sextas e sábados, às 20h, e domingos, às 19h.
Valor do ingresso: R$ 40,00 (inteira) e R$ 20,00 (meia)
Capacidade de público: 190 lugares
O teatro possui espaços destinados a cadeirantes e poltronas para atender pessoas obesas.
Não recomendado para menores de 14 anos.
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