AcervoCríticasLiteratura

Sam Shepard e sua vitória póstuma

Compartilhe
Compartilhe

Ano passado, em julho o ator, cineasta, escritor, roteirista e autor de teatro Sam Shepard sucumbiu aos setenta e três anos com as complicações da ELA (esclerose lateral amiotrófica) diagnosticada dois anos antes. Um cara reservado ao extremo, Shepard manteve em segredo sua doença, só o seus mais próximos sabiam do caso.
Samuel Shepard Rogers III, autor de mais de cinquenta peças de teatro, premiado várias vez, inclusive com o Pulitzer de Melhor Drama por seu trabalho em Buried Child. Como prosista, em obras como A Lua do FalcãoGrande Sonho do Céu e Crônicas de Motel, trouxe lugares associados ao épico da estrada, com aqueles bares na beira da estrada, caminhoneiros, cidades de fronteira, fazendas, motéis, postos de gasolina desolados em uma encruzilhada …
Consciente de sua doença, que o levaria gradualmente da paralisou até a morte, Shepard quis descrever esse processo em um livro que ele chamou de The one inside ou Aqui de dentro, na tradução de Denise Bottmann, na edição que a Estação Liberdade publicou ano passado.
Rotulado como uma obra de ficção, embora seu protagonista, um escritor e ator tenha mais do que uma semelhança passageira com o autor. Aqui de dentro é um romance evocativo e cortante, que começa com um homem em sua casa ao amanhecer, cercado de álamos e coiotes uivando ao longe, enquanto percorre em silêncio a distância entre o presente e o passado.
Como muitas de suas narrativas, Shepard explora a identidade, a liberdade, as lembranças e raízes do passado e a dificuldade de se afastar da vida familiar. Mais especificamente, ecoa em sua peça de 1985, A Lie of the Mind, que gira em torno do relacionamentos ferozmente conflituoso de um homem com seu pai e sua esposa, e seus esforços para consertar – ou, pelo menos, chegar a um acordo – um passado que se afasta e segue rumo ao futuro.
Memórias de família, de mulheres que passaram em sua vida, de trabalhos de atuação, viagens e as explorações que fazia quando criança – estão entrelaçadas aqui, junto com sonhos, fantasias e alucinações semelhantes às pinturas de Bosch. O efeito geral lembra a obra-prima de Federico Fellini, de 1963, Oito e meio, na qual as imagens convergem ante o real, o surreal e o imaginado, como também alucinações provocados pela droga ou pelo álcool ou pelo estresse.

O passado e o presente se confundem e não há barreiras nas narrativas sem fronteiras entre o personagem e o autor. Um romance, que brinca com o improvisado e o impressionista, mas pela consciência do narrador, um arquétipo de Shepard envolvido em uma luta edipiana com seu rabugento pai e preso numa dinâmica passiva-agressiva. com suas namoradas, cuja companhia anseia e desdenha. “(…) Um ser humano que esteja à deriva”, fora dos poucos holofotes.
Cenas diversas são descritas, reflexos de suas peças, imagens surreais que florescem e que projeta a imaginação de seus personagens e símbolos complexos para criar uma paisagem metafórica, semelhante a Buñuel. Aqui de dentro pode ser um trabalho menor de Shepard, mas destila os temas que o preocuparam ao longo de sua carreira, e serve como uma espécie de pedra de Roseta para peças tão notáveis ​​como “Fool for Love”, “Buried Child” e “True West”, ou ainda o seu Crônicas da Morte.

Compartilhe
Por
Cadorno Teles -

Cearense de Amontada, um apaixonado pelo conhecimento, licenciado em Ciências Biológicas e em Física, Historiador de formação, idealizador da Biblioteca Canto do Piririguá. Membro do NALAP e do Conselho Editorial da Kawo Kabiyesile, mestre de RPG em vários sistemas, ler e assiste de tudo.

Comente!

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sugeridos
CríticasGames

Naheulbeuk’s Dungeon Master | One Last Call!

Naheulbeuk’s Dungeon Master é uma obra que se destaca dentre os de...

CríticasFilmes

Madame Durocher: mais uma emocionante história real chega aos cinemas

Há uma frase bastante difundida de Virginia Woolf que diz: “pela maior...

Literatura

Dia Nacional da Alfabetização: Isa Colli dá dicas de leitura

Em 14 de novembro, celebra-se o Dia Nacional da Alfabetização, uma data...

CríticasFilmes

Ainda Estou Aqui trata da angustiante incerteza

“Ainda Estou Aqui” é mais um filme a tratar do período da...

AgendaLiteraturaQuadrinhos

Evento na Gibiteca de Curitiba celebra impacto de “O Mágico de Oz”

O projeto NA-NU na Gibiteca de Curitiba chega a sua terceira edição...

CríticasFilmes

Todo Tempo Que Temos foge do drama romântico meramente lacrimoso

É muito provável que ao se deparar com o trailer de “Todo...

ClássicosCríticasFilmes

Resenha Crítica de Com uma Pulga Atrás da Orelha (1968)

A adaptação cinematográfica de Com uma Pulga Atrás da Orelha (1968), dirigida...