As treze punhaladas que deram fim à prostituta Nadia, no clássico de Luchino Visconti “Rocco e seus irmãos” (1960), foram o cair das cortinas de uma das performances mais emocionantes da história do cinema.
Fora da tela, os atores Annie Girardot (Nadia) e Renato Salvatori (Simone) viviam o primeiro momento de uma paixão que resultaria num casamento de mais de 20 anos e no nascimento de uma filha. No filme, Simone disputava o amor de Nadia com o irmão Rocco (Alain Delon), que termina por abrir mão do seu sentimento para manter a família unida, depois de ver Simone estuprar Nadia.
Com cenas polêmicas para a época (Visconti foi pressionado a cortar as cenas de estupro e assassinato), o realismo da obra foi bem recebido pela crítica. É visceral, sombrio e, às vezes, melodramático, mas a história forte, combinada às incríveis interpretações de Delon, Salvatori e Girardot, transformaram o filme em clássico absoluto. Até então Annie tinha feito poucos papéis em cinema e se apresentava no rádio, na tevê e em clubes de Paris. Nadia fez com que ela entrasse para sempre na história do cinema, como acontece quando um trabalho atinge status de mito.
Nascida em Paris em 25 de outubro de 1931, Annie se graduou com honras no conservatório de Paris, depois de sua estréia na famosa trupe Comedie-Française. Ela ficou no grupo até 1957, mas em 1955 fez sua estréia no cinema em “Treize a Table”, sem muito sucesso. Em seus primeiros papéis, interpretava mulheres de origens dúbias em filmes sombrios, até a grande chance no clássico de Visconti. O papel tinha sido escrito para Jeanne Moreau, mas a indisponibilidade da estrela deu chance à Annie, uma vez que o diretor fazia questão de uma atriz francesa.
Com mais e melhores trabalhos fluindo depois do filme, ela passou a década em trabalhos de destaque, sendo premiada no festival de Veneza de 1965 pelo papel em “Trois chambres a Manhattan” e em 1976, quando recebeu o César (o Oscar francês) de Melhor Atriz por “Docteur Françoise Gailland”, de Jean-Louis Bertucelli, onde interpreta uma médica que tem suas relações afetadas pelo excesso de trabalho.
Apesar de ter começado a carreria explorando sua sensualidade, Girardot se destacou mesmo como a mulher comum, retratando as idiossincrasias e dramas da vida cotidiana. Seu enorme talento brilhava, pois muitas vezes as grandes histórias estão nos pequenos momentos da vida, em seus desdobramentos e reviravoltas. Ela ganharia o César duas vezes mais, em 1996, por “Os Miseráveis”, de Claude Lelouch; e em 2002, por “A professora de piano”, de Michael Haneke (ambos os prêmios de atriz coadjuvante).
Mas foi em 2007 que Annie comoveu o mundo com outra história sobre a vida real e suas curvas acentuadas. No documentário “Ainsi va la vie” (Assim vai a vida), de Nicolas Baulieu, ela mostrou a própria vida. O ocaso de uma estrela, a cada dia sendo consumida pelo Mal de Alzheimer. É lógico que a história seria comovente com qualquer paciente, mas o legado de Girardot e a crueldade de ver que a própria atriz, aos poucos, ia se esquecendo de quem era, fez com que ela virasse um símbolo da doença.
Ela se mudou para um clínica no fim de 2007 e até 2009 ainda tinha traços de lucidez, mas no verão de 2010 foi noticiado que ela já não se lembrava de mais nada. Em 28 de fevereiro de 2011, ela morreu num hospital de Paris, no ato final de uma vida extraordinária. Como sempre, a morte acende os aplausos, e uma nova onda de interesse pela atriz começa, com a proliferação de artigos como esse e um novo interesse em sua obra. É quase impossível não se emocionar com o drama de Annie em “Assim vai a vida”, mas ela não merece piedade. Merece os aplausos mesmo, reconhecimento. Sua vida foi assim. Poderia ter sido diferente, mas como acontece com todas as personagens que interpretou, há algo de mágico na mulher e em sua força para enfrentar as grandes batalhas da vida. Aquelas que não acontecem nos campos e sob a mira de revólveres, mas nos cantinhos da alma. Nas esquinas da vida comum. A vida vai assim…
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