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Anora vai além de um conto de fadas às avessas

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Nos primeiros minutos, “Anora” passa a impressão de um conto de gata borralheira sombrio, uma versão melancólica de “Um Linda Mulher”. Mas, com habilidade que lhe é peculiar, o diretor Sean Baker vai deixando cada vez mais claro, no desenrolar da história, qual a sua verdadeira intenção.

Na trama, acompanhamos a jovem Anora do título (Mikey Madison), uma trabalhadora do sexo da região do Brooklyn, que, em uma noite aparentemente normal de trabalho, acredita ter tirado a sorte grande com uma oportunidade de mudar seu destino. O verdadeiro amor bateu em sua porta levando-a a se casar impulsivamente com o filho de um oligarca, o herdeiro russo Ivan (Mark Eidelshtein). A notícia não tarda a se espalhar pela Rússia e logo o conto de fadas é ameaçado quando os pais de Ivan, que desaprovam totalmente a união entram em cena.

Baker, que também assina o roteiro, constrói uma atmosfera idílica para logo a seguir iniciar o processo de desmantelamento, justamente na altura em que o público se afeiçoou à protagonista. De certa forma há uma torcida também para que o relacionamento provoque um amadurecimento em Ivan, um típico jovem mimado da geração Z. Mas essa jornada não será nem um pouco fácil como se desenhava.

O diretor foca em uma região específica de Nova York afastada do glamour de Manhattan, com uma fotografia propositalmente em tons azuis (que em inglês é a cor que remete à tristeza) para acentuar a dramaticidade. Dentro dessa estética, ele vai alinhavando um ensaio sobre relações de poder, embate de classes e resiliência.

“Anora” não deixa de se revestir como uma denúncia assertiva da forma como as estruturas da sociedade se consolidam na crueldade, enquanto os que conseguem alguma ascensão viram as constas àqueles com quem deveriam se unir. E Baker versa sobre isso de maneira implacável. Para ele, o grande mal nas relações sociais está na ausência de solidariedade. A obrigatoriedade de corresponder às expectativas da sociedade no que tange ao que é considerado sucesso, que consiste, basicamente, em alcançar os objetivos materiais, faz com que lutemos por migalhas ao invés de apoiarmos uns aos outros. A trama aborda essa questão de forma sutil, mas não menos devastadora, lamentando o fato de que somos colocados uns contra os outros enquanto os ricos sempre saem vitoriosos.

O humor se faz presente na forma como as situações que vão escalonando chegando a um absurdo quase cartunesco no terço final. Mas, silenciosamente, tudo fica à medida que percebemos como as cartas estão marcadas, e não há o que se possa fazer para mudar isso. Embora Ani tenha acreditado que sairia daquela situação (a cena em que se despede das colegas do clube de strip-tease ganha contornos trágicos olhada em retrospecto), o ciclo da pobreza é implacável.

As indicações da Mikey Madison na temporada de prêmio não causam estranhamento. Ela compõe a personagem com uma cumplicidade com espectador que nos faz torcer por ela, independente de suas ações, quase colocando quem assiste em primeira pessoa. Isso se dá pela total sintonia entre a estrela e o cineasta. Desde o início, ambos delineiam todas as camadas complexas de Anora. Em nenhum momento o filme a enaltece como um poço de virtudes, pelo contrário contrário, mostra os mecanismos de defesa para uma mulher profundamente falha e assustada que precisa sobreviver. A vulgaridade e visceralidade da personalidade de Ani, construída como uma armadura para si mesma, contrasta com a passividade consciente de quem sabe que está em desvantagem tanto no relacionamento quanto no mundo ao seu redor.

“Anora” mostra como pode ser dura a jornada de crescimento. Tanto Ani quanto Ivan sentem, e Baker procura sempre o caminho mais sutil para demonstrar como eles são afetados. A mensagem é que certas coisas devem ser mantidas em seu devido lugar. E a aceitação e pleno entendimento disso é um dos pilares do amadurecimento.

Anora

Anora
8 10 0 1
Nota: 8/10 - Excelente
Nota: 8/10 - Excelente
8/10
Total Score iExcelente
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