Cinebiografias são aquelas ingratas tarefas de comprimir uma vida em duas horas de filme. Nem sempre dá muito certo, pois os fatos vão se sucedendo de forma acelerada, características do biografado são colocadas de maneira monocórdia, fora as licenças poéticas que costumam ferir a cronologia e a veracidade. Daí, “Mussum, O Filmis” chama bastante atenção ao fato de seguir a receita de uma cinebiografia, mas se valendo de criatividade e reforçando os pontos que dão engajamento a um filme por parte do espectador.
Aqui temos a história de Antônio Carlos Bernardes Gomes, mais famoso por seu apelido de Mussum. Garoto pobre, filho de uma empregada doméstica analfabeta, seguiu a carreira militar como um projeto de ascensão social, ou pelo menos de sustentar da família sem sobressaltos, mas sua vida mudou como fundador do grupo Os Originais do Samba. E quando achava que já tinha encontrado o sucesso e a fama, Mussum ingressou na televisão e se tornou um dos maiores humoristas do Brasil. o ponto mais alto da popularidade após se unir ao famoso quarteto Os Trapalhões, formado por – além dele – Renato Aragão, Dedé Santana e Zacarias.
Inspirado no livro “Mussum – uma história de Humor e Samba”, de Juliano Barreto, o roteiro de Paulo Cursino inteligentemente estabelece duas pautas como base: a relação com a mãe, Dona Malvina e a carreira de sambista com os Originais. Isso evita com que o rumo se perca. Claro que a fase Os Trapalhões vai ganhar destaque e ocupar boa parte da trama, mas sem se afastar dos dois alicerces. Afinal de contas, é pela trupe humorística de grande sucesso nos anos 70 e 80 que grande parte do público o conhece. Para os fãs do quarteto, é impossível não se engasgar entre o riso e a emoção ao ver os quadros e paródias do programa dominical reconstituídos detalhadamente. O filme abre com uma reprodução de uma esquete protagonizada pelo personagem, justamente trazendo o espectador para a trama através de algo bastante familiar que o deixe à vontade para embarcar na história.
Ailton Graça no papel-título se mostra a escolha perfeita. O ator abarca todos os maneirismos do personagem, e a interpretação da versão “civil”, o Antônio Carlos, não cai na armadilha de mantê-los, ainda que o bom humor esteja presente na maior parte do tempo. Mesmo não sendo tão parecido com o biografado, a composição de Ailton é tão acertada que não temos dificuldades de enxergar o personagem. Thawan Lucas fica com a tarefa de interpretar Carlinhos, a infância do protagonista, quando a missão é cativar o público no início da jornada. Já Yuri Marçal vive a fase jovem e militar.
Figura central da história, Dona Malvina é bem defendida por Cacau Protásio, na fase mais jovem, e de maneira soberba por Neusa Borges. A mãe é a responsável pelo lado mais dramático, mas também imprime leveza e graça. Os coadjuvantes também brilham, como os companheiros de Originais e Dedé Santana, que dos Trapalhões é o que tem mais destaque, e tem uma composição meticulosa de Felipe Rocha. Figuras icônicas da cultura brasileira que tiveram papel fundamental na trajetória de Mussum também têm boa caracterização, como Elza Soares, Grande Otelo, que lhe deu o famoso apelido, e Chico Anysio.
Diretor estreante, Silvio Guindane – que começou como ator há 30 anos com o longa “Como Nascem os Anjos” (1996), de Murilo Salles – demonstra segurança e experiência, sobretudo na direção de atores. Seu intuito era de ir além de uma cinebiografia, retratando a vida do brasileiro típico, com sua relação com família, trabalho, enfrentando preconceito, altos e baixos para alcançar seus sonhos. A montagem de André Simões imprime um bom ritmo, adornado pela boa trilha de Max de Castro.
Apesar de muito bem contada, a trama pode deixar a cronologia um pouco confusa, principalmente para quem não tem conhecimento de detalhes da vida do sambista e humorista, por não indicar precisamente as datas. Na primeira fase da história, alguns detalhes do cenário causam um certo incômodo como o muro nitidamente cenográfico na favela, morada de Mussum na infância. Todavia, essas partes mais frágeis são eclipsadas pela boa realização do todo. E como toda cinebio, alguns fatos são deixados de lado para não desviar o foco nem alongar demais a duração. A separação dos Trapalhões é abordada, mas a DeMuZa não é citada. A empresa que Mussum fundou com Dedé e Zacarias ainda no final dos anos 70, exclusivamente para administrar os negócios do trio, foi o esteio durante os seis meses em que ficaram afastados de Renato Aragão, e rendeu um significante prejuízo aos três após serem vitimas de uma fraude em 1986. Apesar de esse ser um fato muito relevante na vida do artista, o roteiro optou pela concisão, não o incluindo.
Por fim, “Mussum, O Filmis” consegue contar habilmente uma história de forma divertida, com bastante humor, drama na medida certa, e é sem dúvida uma bela homenagem ao trapalhão que, mesmo depois de quase trinta anos de sua morte, continua com a popularidade alta como um ícone da cultura pop brasileira.
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