“O Formidável” (“Le Redoutable”, 2017), mais novo filme de Michel Hazanavicius, dá-nos acesso a uma versão pouco conhecida de um dos maiores mitos do cinema mundial, Jean-Luc Godard (interpretado no filme por Louis Garrel). Inspirado no livro escrito pela atriz Anne Wiazemsky – sua musa inspiradora, com quem foi casado entre 1967 e 1979, e vivida por Stacy Martin – o filme mostra o homem por trás da figura intocável de diretor e gênio. Um homem que está passando por um momento de profunda transição e questionamento político e pessoal. Talvez seja a primeira vez, mesmo que ainda através de uma representação ficcional inspirada em um relato pessoal, e, portanto, parcial, que podemos conhecer um lado mais humano e vulnerável de Godard. Assim como um super herói, este tem sua personalidade sempre escondida/protegida por algum símbolo visual. No seu caso, por trás de seus óculos escuros que, não por acaso, quebram constantemente ao longo da narrativa, revelando a instabilidade de seu “personagem”.
“A Chinesa”, filme de 1967, primeira colaboração entre os dois antes mesmo de se casarem, marca o início desta transição. Até então, os filmes de Godard equilibravam sua inquietude pelo desenvolvimento de uma linguagem cinematográfica de ruptura, mais criativa e autoral, com o apelo das narrativas de gênero e seu interesse por estilos e técnicas usadas por grandes diretores Hollywoodianos. O cinema como ferramenta revolucionária e instigador do pensamento já era praticado por ele desde que começou sua carreira, mesmo que de modo mais palatável e atraente ao público. Alguns de seus filmes como “Pequeno Soldado” ou “Tempo de Guerra” já traziam também temáticas mais especificamente sobre a guerra ou, enfim, sobre questões menos aprazíveis. Mas ainda assim, sempre prevaleciam o lado humano e a cinefilia.
Em 1967, com “A Chinesa” e “Week-end à Francesa”, o cineasta começa a radicalizar cada vez mais a linguagem, tornando-se mais hermético e violento com o público. Creio que “A Chinesa” é seu primeiro filme realmente panfletário, no qual chega a apontar para o público e clamar didaticamente por sua participação ativa nas atividades revolucionárias e eventos políticos. Godard se considerava maoista. Estava encantado com a Revolução Cultural na China, promovida por Mao Tsé Tung; pelos ideias de Marx e pelas ações de Che Guevara. Estava decidido a tornar seu cinema porta voz destas vozes e causas.
“O Formidável” acompanha esse processo, durante o qual ele mergulha num modo de vida militante para tentar se redimir de sua condição de burguês. Sua inquietude e frustração em relação ao cenário do cinema mundial alienado aos fatos de sua época se transformam numa busca incessante por uma linguagem nova, capaz de quebrar com a norma e o “establishment” e desestruturar o modo de se experimentar cinema. Ele queria tornar o espectador militante e ativo. Enquanto isso, seu cinema foi se tornando cada vez mais hermético e, para muitos, chato.
Quando “A Chinesa” não faz sucesso de bilheteria nem de crítica, e é rejeitado até mesmo pelos chineses, Godard se vê abandonado. Suas crenças e seu caráter inquestionável são colocados à prova. Parecia que ele havia perdido alguma coisa. E é um momento de recomeçar a partir dos valores que agora lhe eram caros.
Daí seguem as três importantes narrativas nas quais parecem que o filme se concentra:
- a insegurança enquanto cineasta, pela aceitação do público e da crítica
- a insegurança enquanto militante, em torno da eficácia de seu discurso revolucionário no cinema e na vida
- a insegurança e fragilidade enquanto homem envelhecendo, casado com uma linda mulher mais nova e perturbado pelo ciúmes irracional
Enquanto cineasta, evolui ao longo da narrativa para alguém que está tentando buscar formas de tornar, não apenas a linguagem, mas também a própria estrutura de criação cinematográfica um reflexo dos modos de agir e pensar revolucionários, retirando a figura do líder e da hierarquia e, num esforço quase anárquico, tentando horizontalizar ao máximo estas relações. Isto acaba por dar frutos como, por exemplo, sua participação no projecto PRAVDA, com Jean-Pierre Gorin.
Enquanto militante, tenta ser aceito pela comunidade estudantil comunista, participando de reuniões nas universidades ocupadas e jogando pedras em policiais durante as manifestações, mas parece sempre um pouco deslocado, sobre a sombra de sua superioridade intelectual e fachada teórica, sempre em descompasso com o pensamento imediato daqueles que lideram o movimento.
E, finalmente, enquanto marido, é representante de um machismo clássico, que vigora até hoje e, até por isso, precisa ser mostrado, comum até mesmo entre os mais “liberais da época”, que aos poucos vai sufocando e torturando sua mulher com desconfianças, comentários grosseiros e tentativa de controle.
O fato de estarmos vendo uma figura conhecida e, até certo ponto, admirada, nos confronta com um certo desconforto e contradição de quem tenta perdoar e justificar o comportamento daquele que machuca, tornando mais compreensível a posição das mulheres que se mantêm em um relacionamento abusivo, sempre à espera de uma mudança ou da volta às coisas como eram antes.
Para além de todas estas questões, o filme faz várias brincadeiras metalinguísticas, copiando estilos visuais presentes na obra de Godard ou fazendo comentários dentro da própria cena. Os atores estão muito bem e conseguem dar profundidade a seus personagens, guiando-nos da comédia ao drama em diversos momentos.
“O Formidável” consegue, então, retratar uma França em ebulição, movida pela tentativa de mudança e quebra de paradigmas político e social; trazer reflexões em torno do papel da arte e do artista e expor/desestabilizar a normatividade do marido ciumento, tudo isso de maneiro divertida e jocosa, como um bom filme de Godard do início dos anos 60.
Cotação: Bom
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