Filmes

Festival do Rio: Eu, Ela e minha Alma (Tráfico de Almas)

Compartilhe
Compartilhe

Eu, Ela e minha Alma (Tráfico de Almas) é um daqueles títulos brasileiros que saem até melhor que o original Cold Souls, filme de Sophie Barthes (nada a ver com o grande crítico estruturalista) neste Festival do Rio 2009.

Paul Giamatti é Paul Giamatti, conhecido ator americano que está ensaiando como protagonista da famosa peça de Checov Tio Vânia. Giamatti (Sideways, O Anti-herói Americano) é a versão ianque do anti-herói do grande dramaturgo russo: angustiado e completamente imobilizado por suas banais inquietações existenciais, ele acha que sua alma está lhe pesando muito e lhe impedindo de se entregar totalmente ao personagem de sua peça. A partir de um insólito anúncio de jornal, onde uma empresa oferece os serviços de “armazenagem de almas”, ele quer tirar umas férias de sua (im)própria alma.

Numa higiênica sala cirúrgica, que em nada difere das salas atuais de tomografia computadorizada, sua alma é extraída e condensada num minúsculo caroço parecido com um grão de bico. Com apenas 5% de sua alma restante, segundo os cientistas o suficiente para levar uma vida normal e mais feliz, ele tenta se reintegrar ao seu cotidiano. Sua vida continua igual, mas com sutis alterações que não passam despercebidas à sua mulher (vivida pela excelente Emily Watson, num papel menor para seu talento) e pelo diretor da peça de Checov: na cama já não consegue mais funcionar; na peça, sua atuação como “Uncle Vanya” torna-se ridiculamente caricata.

Sentindo-se incapacitado até mesmo para a infelicidade, ele volta para recuperar sua alma, mas acaba levando emprestada por duas semanas uma alma de poeta russo. Esta agora lhe provoca os mais soturnos e suicidas pensamentos e sua atuação na peça se torna veementemente passional, transformando Tio Vânia numa outra versão de Raskolnikov. Desesperado, ele volta à empresa em busca de sua alma original para descobrir que ela havia desaparecido. Ele vai descobrir que atrás da corretíssima e prestativa empresa americana de depósito de almas, havia uma rede russa de comércio negro espiritual. Ele vai conhecer Nina, uma “mula” russa traficante de almas que de tanto transportar almas de outras pessoas da Rússia aos Estados Unidos acaba por não ter alma própria. Nina, não exatamente uma desalmada, sentindo-se culpada, leva o ator para a Rússia, para tentar recuperar sua alma que foi incorporada por uma bonita e entediada modelo russa que imaginava estar com o espírito de Al Pacino…

Este roteiro insólito lembra muito os de Charles Kaufman (Quero ser John Malkovich, Brilho eterno de uma mente vazia), porém Sophie Barthes dá um tom menor, menos histriônico, mais filosófico e mesmo irônico. O filme é, na realidade, uma reflexão contemporânea da noção cartesiana da dualidade corpo e alma. O mote é de uma ideia de Descartes de seu tratado Paixões da Alma de que nosso espírito reside na famosa “glândula pineal” e lá nossos pensamentos são gerados. O ser humano, tal como os outros animais, não passa de uma máquina animada por sensações e percepções que encontram eco na tal recôndita glândula e de lá se espalham pelo corpo através de excitações do sistema nervoso.

A ideia de Descartes foi desacreditada, mas ela retorna nos tempos atuais de Prozac:  será nossa alma dispensável, fungível e mesmo vendável? Será que nos basta 5% de espírito para levar uma vida mais confortável sem grandes inquietações? Hoje os neurocientistas parecem recuperar Descartes por outra via: nossa capacidade de pensar, a autoconsciência humana, pode ser devida a uma alteração morfológica do sistema do córtex límbico que provocaria uma deformação em nossa apreensão “natural” da realidade. Nossa capacidade reflexiva seria antes uma espécie de defeito de fabricação que nos desloca e nos separa inexoravelmente de uma integração imediata ao ambiente.

Talvez toda alma seja menos ainda que os supostos 5%: geneticamente nossa diferença para uma mosca não ultrapassa 3% da totalidade dos genes. Sophie Barthes em seu filme nos leva a entender que antes de ser um todo indivisível e grandioso, nossa alma é não mais que um caroço: apenas um resíduo, aquilo que nos resta quando nada mais nos resta. Por isso, a personagem de Nina, a mula russa traficante que tem espiritualmente apenas fragmentos das muitas almas que transportou em suas viagens entre os continentes é capaz do gesto mais humano e compassivo do filme. Talvez a alma não seja afinal mais do que um fragmento, aquele que faz toda a diferença…

Compartilhe

1 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sugeridos
CríticasFilmes

The Damned: Uma jornada de horror entre Tragédia e Folclore

A Sétima Arte gosta de explorar situações cotidianas, destacando seu perigo através...

CríticasFilmes

“Kasa Branca”: uma ode às amizades nas periferias

Podem até me chamar de Sheldon Cooper, mas a verdade é que...

AgendaFilmes

O cinema de Fatih Akin é tema de mostra gratuita na Caixa Cultural no Rio

A mostra “Do outro lado – O cinema de Fatih Akin”, que...

AgendaFilmes

“Homens de Barro” terá lançamento nacional

Coprodução Brasil-Argentina, o longa-metragem Homens de Barro chega aos cinemas em fevereiro....