A busca pelas origens sempre rende alguma coisa – nem que seja decepção. Mas, na maioria das vezes, esta busca é catártica, por vezes até poética, e é neste último caso que uma jornada pessoal acaba virando arte. Nas mãos de uma pessoa habilidosa, é claro. Isto é o que aconteceu com o cineasta Karim Aïnouz, cuja primeira visita ao país natal do pai rendeu não um, mas dois documentários. Um deles, o mais intimista do duo, é Marinheiro das Montanhas.
Funcionando ao mesmo tempo como diário de viagem e correspondência para a mãe, Iracema, o documentário acompanha Karim na travessia de barco entre Marselha e Argel, bem como as andanças do cineasta por Argel e pela região da Cabília, onde fica o povoado de Tagmut Azuz, onde seu pai, Majid, nasceu. Entretanto, apesar de a figura paterna ter inspirado a aventura, em todo lugar Karim encontra lembranças da mãe: de repente o documentário se transforma, e acaba sendo sobre ela.
Iracema e Majid se conheceram quando ambos estavam estudando nos Estados Unidos: ela estudava o DNA de algas marinhas no mestrado, ele fazia engenharia. Um romance que nasceu em Washington e venceu o teste da distância quando ele foi para o Colorado: a solução foi o casal trocar cartas, muitas cartas. Majid voltou para a Argélia quando Iracema estava grávida, obrigando-a a voltar também para o Brasil, onde um golpe militar recém havia acontecido. Ele voltava para uma Argélia livre, ela para um Brasil sem liberdade. O contato do filho a quem Iracema deu à luz com o pai se fazia, como ainda se faz, por telefone, tanto é que, hoje morando em Paris, Majid se ofereceu para acompanhar Karim até Tagmut Azuz, oferta que o cineasta declinou.
A Argélia, terra natal do pai do diretor, foi um lugar que sempre o assombrou e à mãe dele. Este é o verbo escolhido: assombrar. Cinquenta e quatro anos assombrados: é isso que Karim acumulou até decidir fazer a bendita – ou maldita? – viagem à Argélia. Esta é uma jornada de muito desconforto e muita estranheza, acima de tudo.
No caminho, pode haver boas surpresas – como o argelino que, ao ouvir Karim dizer que é brasileiro, cita Oscar Niemeyer. Pela primeira vez, ele não precisa soletrar seu nome para ser entendido. Nas ruas de Argel, vê muitas pessoas com suas máquinas de escrever, oferecendo seus serviços de datilografia. E em Tagmut Azuz, encontra não apenas seu homônimo, mas toda uma família cuja existência desconhecia. Nada disso seria possível sem um mergulho no desconhecido:
“[..] eu quis correr o risco que a maturidade e a experiência me permitem. Antes de tudo, um risco artístico ao me distanciar do que sei, abrindo o projeto ao inesperado. O risco também de me ver enfrentando minhas origens.”
Nardjes A.: dias melhores virão?
Se em Marinheiro das Montanhas Karim Aïnouz se voltou para o passado, em Nardjes A. há uma preocupação com o futuro construído pelas mãos do povo. Acompanhando um único dia de protestos, o oito de março de 2019, e focando numa única personagem destes protestos, Karim traça um retrato de esperança.
Em 2019, irromperam protestos pela capital Argel pedindo uma Argélia livre e democrática, com os participantes mostrando-se contra um possível quinto mandato do então presidente argelino, Abdelaziz Bouteflika. É quase impossível assistir aos protestos argelinos e não se lembrar dos protestos de junho de 2013 no Brasil e do posterior sequestro das pautas do movimento pela direita brasileira, como o combate à corrupção. A própria definição de Aïnouz para Nardjes A. ressoa nosso passado recente: “Eu queria que esse filme fosse ousado, alto, barulhento, rápido e voraz, como as manifestações foram. As manifestações de Argel ressoam além da Argélia. Eles falam de uma geração que teve seu futuro roubado, mas ainda encontra na esperança um lugar fértil para imaginar o amanhã.”
Movida, como tantos outros ativistas, pelo objetivo de viver em paz, Nardjes é neta de mártires da independência, mas é também uma jovem comum que se encontra no redemoinho dos protestos. Ela mesma conta que ela e tantos outros só participaram do primeiro protesto por pura curiosidade, e foram ficando por convicção. Depois dos protestos, ela liga para os amigos para saber se estão bem e fala lacrimejante com a mãe, que não mora em Argel. Após as ligações, sai para comer e dançar, gastando a energia acumulada ao longo do dia. Os protestos servem para isso também: não gastar, mas acumular energia.
Logo no início somos informados que o documentário foi gravado em um smartphone, ao longo de um único dia. Sem a narração do diretor, mas com falas esporádicas de Nardjes contextualizando sobre sua vida e trajetória, a informação do “gimmick” – ou truque – logo no começo serve como curiosidade e como ponto de informação para que nos maravilhemos com as habilidades do diretor mesmo com uma câmera “improvisada”.
Com seus dois documentários, Karim Aïnouz é bem-sucedido naquele que é – ou ao menos acho que deveria ser – o objetivo maior do gênero: informar. Saímos da sessão dupla conhecendo a Argélia de ontem e de hoje, e quiçá de amanhã. Em Marinheiro das Montanhas, o diretor descobre que seu nome, Karim, significa “generoso” na língua local. E foi de fato de tamanha generosidade que ele tenha permitido, por meio de sua arte, que o acompanhássemos em sua jornada à Argélia.
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