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Mescla de almanaque histórico brasileiro e autobiografia despojada: conheça “Gastura”, de Fernando Machado

Engenheiro civil aposentado registra memórias e retrata cenários de sua vida, mesclando com sua percepção sobre o Brasil e sobre o mundo

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“Minha gastura é assim. Causa anomalia física e mental, sem motivo relevante. É irracional, fomentada por um pensamento, uma lembrança, uma notícia.” (Trecho da pág. 14)

O escritor Fernando Machado é dono de uma memória privilegiada. Nela, encontrou uma maneira cativante de contar a sua história. Ao se aproximar dos 80 anos, viveu toda a ebulição mundial do pós-guerra e se lembra bem das histórias, ‘causos’, reviravoltas, desilusões e traumas coletivos que esteve exposto. “Gastura” (Editora Labrador, 304 pág.) é um registro da história brasileira, americana e mundial de meados da década de 40 até o ano 2000, mas sobretudo, é a história de Fernando — que compartilha a vida com sua família, aventuras de férias em São Carlos e na Praia Grande, cidades paulistas, os anos da faculdade, suas idas e vindas no amor, a decisão de abandonar a bebida alcóolica e outras intimidades.

Engenheiro civil aposentado, o autor se formou pela Universidade Mackenzie em 1968. Começou a se dedicar à literatura pouco antes da pandemia, já com 75 anos de idade. Quando começou uma terapia de regressão, percebeu-se dono de uma memória viva, rica em detalhes dos fatos, de seus contextos e das transformações que ocorreram ao longo do tempo na sociedade a qual estava inserido. Fernando também foi fundador de um Espaço Multicultural que ganhou vida após sua aposentadoria. Pouco depois, se mudou para Florianópolis –  quando começou a se dedicar à escrita.

Obra é fruto de “acidente de percurso” e tratamento psicoterapêutico

Segundo o dicionário, a palavra “gastura” é definida por uma sensação de mal-estar físico que causa náuseas, arrepios pelas mais diversas razões. Mas também existe um significado informal, podendo ser interpretada como um cansaço ao lidar com situações desconfortáveis.  A “Gastura” de Fernando é, portanto, repleta de memórias honestas.

“Comecei a escrever em 2019, pouco antes da pandemia, aos 75 anos de idade, por acidente de percurso, uma vez que eu nunca havia pensado nesta possibilidade. Entretanto, iniciei uma terapia de regressão bem fundamentada em 2018 que resultou tão cheia de detalhes e lembranças, que acabei por fazer um inventário minucioso das seções”, detalha o autor. “Ao final do processo, organizei os manuscritos, estudei os fatos históricos mencionados e transformei tudo neste livro.”

Os primeiros acontecimentos datam da década de 40, quando o autor compartilha sua infância, brincadeiras favoritas e detalhes dos locais que frequentava em sua infância – para em seguida passear pelos principais acontecimentos históricos da segunda metade do século 20 — desde a chegada da televisão até o Bug do Milênio, na passagem de 1999 para o ano 2000.

Suas palavras ilustram com clareza a eleição de Juscelino Kubitschek e a construção de Brasília, a chegada do aparelho televisor ao Brasil, o assassinato do presidente americano John F. Kennedy, conflito do Vietnã, os festivais de Música Popular Brasileira, crises políticas na América Latina e lembranças das Copas do Mundo de Futebol. A chegada do homem à lua, a descoberta do vírus que passou a ser chamado ‘HIV’ e redemocratização do estado brasileiro, marcada pela trajetória do Partido dos Trabalhadores, a morte de Tancredo Neves e a eleição de Fernando Henrique Cardoso também estão nas lembranças de Fernando, que nos conta a repercussão pública de cada um destes fatos.

A memória do autor ainda registra programas inesquecíveis da televisão, temas e jingles musicais que ainda hoje dominam o imaginário popular. Através de seus relatos, percebemos como Fernando observava o mundo a seu redor e as reações populares a cada acontecimento. Esses fatos, porém, são essencialmente a condução narrativa de sua vida. Do que viveu e sentiu através de sete décadas e agora – compartilha conosco.

Ao explanar a importância do líder religioso e ativista político pelos direitos dos negros, Martin Luther King Jr., Fernando apresenta também um panorama global daquele momento. Trata dos movimentos revolucionários que ocorriam entre os universitários franceses e a Primavera de Praga, num momento que a antiga Tchecoslováquia desejava se desvincular do espectro comunista encabeçado pela União Soviética. Usa uma linguagem leve e pontua sua relevância, sem comprometer a qualidade da leitura.

Para escrever o livro, buscou inspiração nas obras do escritor norte-americano Ernest Hemingway, nos livros da jornalista e escritora espanhola Rosa Montero e  na vasta literatura de Alcoólicos Anônimos. A leitura de “Gastura” é fluida como um tête-à-tête e de narrativa bem conduzida, alternando momentos de tensão, descontração e euforia. Sempre soando como confissões do escritor a um colega disposto a escutar.

Depois da primeira edição de “Gastura”, o autor iniciou o seu primeiro livro de ficção, Phenix, e atualmente se empenha na escrita de outro romance ficcional, que envolve temas polêmicos como gênero, raça e preconceito. Com nome provisório de “Spoiler”, a previsão inicial de Fernando é que o trabalho seja lançado logo no primeiro semestre do ano que vem.

Leia trechos de “Gastura”, de Fernando Machado:

“Meu pai era funcionário público. Trabalhava no Fórum da praça João Mendes, em uma repartição referente a cartórios. Nunca teve grandes ambições, parecia satisfeito com o que fazia. Muitas vezes, convidava-me para tomarmos o lanche da tarde no Fórum.  Eu gostava desse programa e, quando tinha sorte, via algum preso algemado sendo conduzido. Chocante! Todo fim de mês ele chegava em casa com o carro abarrotado de mantimentos para uso doméstico. Toda a família, com muito entusiasmo, descarregava o porta-malas lotado e levava tudo para uma pequena despensa na cozinha.” (pág. 36)

“Minha namorada do Brooklin e eu já estávamos juntos havia mais de dois anos em perfeita sintonia, quando os acontecimentos políticos começaram uma silenciosa corrosão em nosso feliz relacionamento: assim como tudo estava dividido em esquerda e direita, estávamos transformando-nos em namorado de direita e namorada de esquerda. Lamentavelmente, em nosso penúltimo encontro, na Confeitaria Vienense, percebi que meus anseios conservadores estavam entrando em conflito com sua ideologia revolucionária.” (pág. 72)

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