Lucas Castor é escritor e fotógrafo. Nasceu em Brasília e hoje vive entre a Suíça e Portugal. Formou-se em Antropologia na Universidade de Brasília e, desde 2023, cursa um mestrado em Escrita Criativa na Universidade de Coimbra. Publicou seu primeiro romance, “Cavalo”, em 2022 pela editora Penalux. O livro foi finalista do Prêmio Mozart Pereira Soares 2023.
- (Capítulo 1)
Levantem-se, e, balançando as pernas, sem o alcançar, eu e Marcos olhamos para o chão. Meu irmão almoçava com a lata de achocolatado ao alcance das mãos. Ao longo da chuva de 1977-1978, de novembro a março levou-a ao colégio, à natação, ao parquinho, ao Beirute, à cama na hora de dormir. O papel, onde se leria Nescau e se veria a promessa de uma bebida cremosa e borbulhante, foi arrancado por papai, que fez pequenos furos na tampa, para que os tatuzinhos-bola respirassem. Viveriam apenas para serem torturados pelo meu irmão, quando tivesse vontade.
Marcos pingava água nos furos da lata, com cuidado. Abria no fim de tarde, após voltarmos do clube Vizinhança ou da aula de inglês, e deixava que passeassem pela mesa de jantar, tomando o banho de sol do dia. Depois os arrastava de volta para o cativeiro, com uma brutalidade que era mais falta de controle com uma brutalidade que era mais falta de controle sobre o corpo do que desejo de machucar. Meu irmão tinha só cinco anos. Um ou outro tatuzinho dava sorte, e da mesa não caía para a lata, mas para o chão. Quando via isso acontecer, eu chamava a atenção de Marcos, tentava o distrair de alguma forma, dando chance para o bicho se enfiar entre as fendas do piso de taco e desaparecer. Mas a maioria voltava para a lata, e nela agonizava por alguns dias, até que morressem de fome ou de desgosto, ou até que meu irmão decidisse brincar com eles.
Brincava os matando. Fechava o punho e lançava golpes desajeitados contra a mesa, explodindo cinco, dez tatuzinhos, fazendo papai gargalhar na poltrona. Bernardo, se estivesse por perto, soltava o berro, então mamãe o repreendia. Não dava uma semana e lá estavam os dois, cavando os jardins em frente ao nosso bloco, em busca de novas vítimas. Muitas vezes quis libertar o exército dos encouraçados, mas não tive coragem. Se fosse surpreendido por papai, não só levaria uma bronca, mas perderia a chance de ganhar um pouco de carinho. Um dos atalhos para receber esse afeto era a caça aos tatus.
2. [Capítulo 19]
De mamãe, tentei o hábito do cigarro. Ela voltou de Cascavel 6 meses depois, em dezembro de 84. Estava feliz. Encontrou no MST o que lhe faltava na Pastoral: a laicidade, a ocupação e a ingenuidade de uma organização social nascente. Patrícia mudaria o mundo.
Debaixo da fruteira de bronze na mesa da sala, papai deixou os papéis do divórcio. Estavam lá há três meses, aguardando pela ciência e concordância da parte-Patrícia.
Entrou em casa numa segunda-feira à tarde, carregando a mala pela alça. As rodinhas ficaram em algum lugar do Paraná ou do Rio Grande do Sul. A cada retorno das viagens aos assentamentos e ocupações, mamãe aparecia mais forte, com os cabelos mais volumosos e mais claros de sol, a pele laranja. As veias engrossavam nos antebraços e nas panturrilhas. Além das dos dedinhos, perdeu as unhas dos anelares do pé, se é que posso chamá-los assim. Vinha mais bonita.
Abraçou-me com força, seus braços eram alicates, o tronco uma tora chapada de madeira. Tinha um cheiro forte de viagem, de suor e de cigarro. Estranhei, ela não fumava.
— Cadê teus irmãos?
— Marcos tá no judô, Bernardo na natação. Vou buscar eles às quatro.
— Vai buscá-los, Carlos.
— Sim, sim. Isso.
— Que saudade, meu filho!
— Também senti saudades, mamãe!
— Como tá o curso?
— Tá legal.
Viu os papéis embaixo da fruteira. A cartolina anunciava, Para Patrícia. Abriu-os. Enquanto lia o pedido de divórcio de papai, não perdeu o sorriso discreto, de lábios, que abriu quando perguntou sobre minha faculdade. Guardou os documentos no envelope e o deixou de volta embaixo da fruteira. Pediu para que eu carregasse a mala até o closet. Seguiu-me até lá, em silêncio. Deixei a mala no chão e me virei. Mamãe estava sentada na ponta da cama de casal. Deu dois tapinhas no colchão, me convidando. Não consegui segurar o choro, ele veio de uma vez. Mamãe abraçou-me. Eu soluçava, engasgando com o catarro, soltando gemidos que não pareciam meus. Um estranho chorava dentro de mim, uma pessoinha menor, esquisita. Queria dizer a mamãe que não chorava por causa da separação, afinal era melhor para ela, e eles não eram mais um casal, há anos. Queria dizer que chorava por algo diferente, algo sem contorno, muito maior. Mas não disse nada.
3. [Capítulo 28]
Em novembro, dois meses depois do nosso encontro, chuvas esporádicas, porém fortíssimas, começavam a cair na cidade. Castigavam o asfalto, pobre asfalto, por seis ou sete meses acostumado ao tempo bom. Os carros patinavam no líquido oleoso e escorregadio que se formava após essas primeiras chuvas de verão. Na volta de uma ultrapassagem, o motorista do ônibus em direção à Esplanada perdeu o controle, ao retomar a faixa da direita. Derrapou e avançou rumo à calçada. Da janela, puder ver o pavor de um homem parecido comigo, o cabelo longo, a baixa estatura, a magreza, o terno cinza e a pasta de mão preta. Não fossem os cabelos mais brancos e os dois olhos na cara, eu pensaria que estava vendo assombrações. Foi atingido em cheio, um barulho seco contra o vidro. Morreu na hora.
Os passageiros, atordoados; uma senhora chorava, um homem desmaiou. O motorista, impassível. Talvez em choque, permanecia sentado em frente ao volante. Quase ria, tive a impressão. As rodas da direita em cima da calçada, as da esquerda no asfalto. Alguém disse, Assassino!, então me levantei depressa, para sair do ônibus. Queria escapar daquilo. Tivemos que gritar, para que ele abrisse a porta. Desci as escadas e, puxado pelo magnetismo da tragédia, olhei para o morto. Era uma massa disforme e colorida, em tudo ainda viva. Arrependi-me, apressei o passo e mirei a próxima parada de ônibus. Sentia meus ossos esmagados, como os dele.
Aguardando no ponto, com a morte pelo corpo, entendi o luto de Marília naquela quarta-feira de setembro. Ela matou um homem. Em agosto de 2013, antes do nosso encontro, as semelhanças físicas não seriam o único ponto em comum com o atropelado. Além de não atravessar a rua na primeira oportunidade, eu também teria esperado pela colisão, sem me mover. Marília vestia o preto para marcar a morte de Carlos Impotente II, nome que cravei numa arvorezinha perto de casa, na 708. Carlos Impotente II; abaixo, 1966 – 2013.
O segundo ensinamento de Marília foi esse, o silêncio completo. Ignorou-me por meses, passando em frente à minha mesa sem dizer palavra. Eu era o hiato de uma pessoa. Ou eu nascia de novo, potente, ou seria para sempre um atropelado. Eu precisava recobrar as forças, as forças que perdi aos 30 anos de idade.
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