Clarice Lispector: Os três ‘S’ de A Hora da Estrela

“… emergiremos no mar da subjetividade que permeia o legado literário de Clarice Lispector, tomando como objeto a última estrela publicada do seu céu. A hora dela.”

Os fios – tecidos de forma artesanal pela escritora e conduzidos com maestria pelo narrador (o escritor fictício Rodrigo S.M – seria ele, ela?) – da história da retirante alagoana que se vê cercada de solidão na cidade do Rio de Janeiro, se finda em uma cocha que tive a liberdade de batizar de “Os Três S”. Expressão que sintetiza as três palavras que compõem a espinha dorsal do romance, e da imensa – tamanho e profundidade – obra de Clarice.
Seus: Signos, Símbolos e Significados.
As oitenta e sete páginas do romance fazem um relato poético-subjetivo da trajetória de morte/vida (nessa ordem) de uma estrela (in) comum. Clarice camufla no olhar de um narrador-observador fictício (Rodrigo S.M), que testemunha o nascimento da personagem central Macabea –, seu deslocamento da cidade de Alagoas para o Rio de Janeiro e o seu fim ‘estrelar’. Os fatos fogem à regra, e não seguem um padrão linear de narrativa. Nele o presente se intercala a flashbacks, pílulas nostálgicas se materializam e justificam a composição da atmosfera de vida da personagem.
A história da nordestina, alagoana e retirante (quantos fardos para uma estrela!), nasce no céu árido de Alagoas. A pequena Macabea vive toda a infância em território nordestino e com a morte dos pais passa a ser criada pela tia. Após a partida da ente querida – que antes da morte conseguira um emprego para a obediente sobrinha –a jovem se muda para o Rio de Janeiro. No calor da cidade maravilhosa a frieza da existência continua e ela passa a existir sozinha – como sempre esteve acostumada – em um modesto quarto de sobrado que dividia com outras quatro colegas.

“… E quantas Macabeas existem a perambular por aí, inconscientes do brilho e da luz que a perseguem, que a cegam…”

A monotonia da jovem e sua profunda relação consigo mesma é narrada por uma perspectiva de subjeção e metáforas que a todo instante simboliza o mundo particular de solidão e interrogações que as coordenadas geográficas daquele pequeno meteoro luminoso deixava em coma na sua própria cabeça, e em erupção, na cabeça de nós, leitores.
“Usurpemos uma estrela de quatro pontas no céu cinzento (…) As pontas que indicam a mesma direção, porém por rotas distintas, são os signos, os símbolos, os significados… A quarta ponta é a própria Clarice. Densa, profunda, poética.”

Ilustração do Pedro Gabriel, escritor do livro 'Eu me chamo Antônio'
Ilustração do Pedro Gabriel, escritor do livro ‘Eu me chamo Antônio’
1) A L E R T S E – A D – A R O H – A
Há um proposital – e irônico – jogo de espelho no título do romance. Ao analisarmos de forma sintagmática as duas palavras chaves do título percebemos a inversão de significados que a expressão assume, e o poder ilusório que esse joguete gramatical faz o leitor ficar inconscientemente preparado para o desfecho trágico da personagem principal.
2) Rodrigo S.M – Pseudônimo Narrativo
A olho nu ele pode passar despercebido e ser visto apenas como mais um ‘terceiro olho’ da teia narrativa. Mas, observando de maneira mais profunda e sensível testemunhamos a ousadia literária de nossa grande escritora, em transformar o mero narrador na identidade que ela assume para contar ainda mais minimalista e detalhadamente sua visão perante a saga de Macabea e o papel desempenhado por essa segunda voz na própria ação dramática.
3) Arquétipos Sociais e a Psiqué
O operário, a retirante nordestina, o patrão carrasco, a secretária voluptuosa… Nosso pai, nós mesmos, nosso patrão, nossa colega de trabalho ordinária… Alvenaria de tipos sociais bem característicos nos é tão próxima. E eles juntos, carregam no cerne de vossa existências – da mais pacata a mais esmagadora – a impressão digital de uma época, tendo a psicologia e o eu interior de cada personagem como projetor literário.
4) A ‘Estrela’ Macabea e suas origens
O que faz uma verdadeira estrela?
Os mais narcisistas – e óbvios – diriam que são as características – obvias como eles. O brilho próprio, a luz efusiva… É muito mais além, e opaco. É justamente o contrário. E não a escassez dos pré-requisitos anteriores, mas a falta de consciência de ter a posse deles em suma essência. Um breu generalizado das marcas psicológicas que compõem a personalidade, diretamente vinculado com o sentimento nostálgico das raízes que dão forma a peculiar persona que ali brilha na dormência da própria existência.
5) A Rádio Relógio
Frequências de tantas copas, inúmeros gols, velórios honroso e coroas mortas, de mil e uma noites.

– Jurassicamente démodé! O suprassumo da modernidade outrora!

Se contextualizassem o romance para os dias atuais as ondas seriam engolidas pela eloquência prisional do quadrado mágico. Hoje, ainda mais modernas do que ontem. Finas como uma moldura real, vivas como uma tela expressionista do renascimento, e ambígua como uma cartilha militar forjada em chumbo e sangue. Mas como não estamos no mundo hyteck que nos engole dia a dia, o veículo de comunicação do romance contradiz sua nomenclatura de veículo de comunicação de massa, assumindo o papel de confidente na vida simplória da protagonista. Clarice utiliza um ser inanimado, cujo único meio de expressão é a voz. O timbre escondido que nos permite imaginar os traços, no círculo restrito de comunicação interpessoal de Macabea.
6) As retirantes, O Judaísmo e o Nacionalismo Alemão.
Vidas Secas. Alcorão. Suástica. Clarice Lispector!
As bandeiras regionais, religiosas e políticas presentes na narrativa e as nuances autobiográficas da pernambucana autodeclarada hasteiam pelo território de Macabea. A origem judaica da escritora, sua fuga para o Brasil devido ao nazismo e a fuga de Macabea para o Rio de Janeiro; O homicídio da empresa automobilista alemã e a perseguição nazista aos Macabeus – arvore genealógica derivacional do nome de Macabea. Qualquer semelhança com a vida real não é mera coincidência literária.

“… O céu de pluralidade de Macabea, de Clarice, de nós”.

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