Gringo Carioca é uma figura ambivalente, intermediária e transcultural da América do Norte ao Sul. Radica(liza)do na metrópole pre-pós-moderna do Rio de Janeiro, ex-capital do Brasil, é autor dos livros Manifestos e manifestações (Patuá, 2018) e Reflexos & reflexões (Oito e Meio, 2014). Tem poemas publicados nas antologias Voces del vino (Books&Smith, 2017), Escriptonita: pop/oesia, mitologia-remix e super-heróis de gibi (Patuá, 2016) e Novos talentos da literatura brasileira – Poesia, contos e crônicas (Confraria de Autores, 2014), e em revistas como Plástico Bolha, Mallarmargens, Subversa, Et Cetera e Otoliths. É também o alter-ego do americano nativo e brasileiro nato Marco Alexandre de Oliveira, Doutor em Literatura Comparada e Mestre em Línguas e Literaturas Neolatinas pela University of North Carolina (EUA), Bacharel em Ciência da Religião pela University of South Carolina (EUA). Confira a entrevista dada pelo escritor à Revista Ambrosia.
Ambrosia: Seus poemas tem um belo jogo de apropriação que acho que deve ter um pouco na lida da tradução de uma língua à outra. Como um exercício de deslocar-se pela linguagem e pelas palavras, também tentando bagunçá-las ou arrumá-las. Uma deslocação. Como é isso?
Gringo Carioca: Acho que a “apropriação” é um termo apropriado! De fato, gosto de me apropriar até mais do que criar ou inventar, propriamente dito. Eu seria um “bricoleur” nas concepções pós-estruturalistas de Derrida e de Deleuze e Guattari, que por sua vez apropriaram o termo do estruturalista Lévi-Strauss. Essa “bricolagem” também é procedimento vanguardista, desde as colagens cubistas às montagens dadaístas e surrealistas, modernistas que se apropriaram dos primitivos (vide a antropofagia) e que depois foram apropriados pelos chamados neo vanguardas ou pós-vanguardas. Como disse o antropólogo supracitado: somos todos canibais!
Quanto à tradução, que também pode ser uma forma de apropriação, por ser “gringo” eu naturalmente e de algum modo “traduzo” de uma língua ou cultura para outra. Como a língua portuguesa não é a minha língua nativa, sempre gerou um encanto ou fascínio pela materialidade da palavra, pela textura da linguagem. Depois aprendi com os concretistas e tropicalistas como jogar ou até brincar com as palavras. Mas a regra do jogo vem da minha experiência própria com a língua. Como diz o Caetano Veloso: “a língua é minha pátria/ Eu não tenho pátria: tenho mátria”.
A partir daí se chega a questão central da “deslocação” ou deslocamento, que no meu caso seria antes um modo de ser do que uma forma de escrever. Costumo dizer que o Gringo Carioca é uma figura ambivalente, intermediário e transcultural. Escrevo, portanto, desde um entre-lugar: entre línguas, entre culturas, entre linguagens. Este (entre)lugar é transformativo, transforma as formas e as fórmulas form(ul)adas. Onde há ordem haverá também desordem, e vice versa.
A: Acho que a política é um ato de mudança. E sua escrita também o é. Seu sentido do que você escreve nunca está parado. Você mexe com a língua de um jeito próximo com que as vanguardas fizeram, dentro de seus movimentos. Como você estrutura tanto um poema ou um conto partindo desta noção de jogo com a linguagem?
Gringo: Relação entre a política e a poética é problemática. Eu sempre procurava não misturar as duas por questões “estéticas”, mas recentemente mudei de opinião por causa de mudanças interiores e exteriores a mim. Ao me mudar definitivamente para o Rio de Janeiro, acabei tendo contato direto com movimentos culturais e de rua, que inspiram o engajamento individual e coletivo. Evidentemente, mudanças no cenário político brasileiro e mundial também demandaram alguma resposta poética, preferencialmente de revolta se não revolucionária.
De certo modo, as vanguardas foram bem revolucionárias, tanto na poética quanto na política, enquanto buscavam (con)fundir a arte e a vida. Sempre me identifiquei com esse ideal para o real, primeiramente com o zen budismo, que ensina a arte do viver, depois com as diversas vanguardas, que mostram que a arte pode ser ou se tornar uma forma de vida. E as vanguardas, por serem modernistas ou por serem modernos, se caracterizam pela mudança perpétua através da inovação, renovação, invenção etc. Por isso, os sucessivos movimentos acabam até ficando repetitivos, pois a mudança vira um constante!
No meu caso, cada poema ou texto é uma invenção, apesar da evidente repetição de certos procedimentos poéticos. Concordo com a formula de Kandinsky, de que a forma é a expressão (exterior) do conteúdo (interior), embora eu também diria o contrário, de que o conteúdo é a impressão da forma. Ao compor um poema, eu trabalho quase que obsessivamente na forma do conteúdo que surge através de alguma fonte de inspiração tão espiritual quanto material, que vem do além ou de dentro de mim. Os meus poemas assim viram jogos de palavras que são re(di)gidas por alguma determinada regra do jogo que parece a priori mas na verdade é quase sempre após o fato.
A: A arte visual também é muito presente nos seus livros. Há sempre uma veia visual tanto nos poemas mais concisos tanto nos poemas mais encorpados. Acho que também obedecem à tipo de corte cinematográfico como um plano de costura do cinema. Você gosta de cinema? E como você vê esta possível influência?
Gringo: Após ler poetas modernistas clássicos de língua inglesa como T.S. Eliot, Ezra Pound, Wallace Stevens, W. B. Yeats, William Carlos Williams e E. E. Cummings, e de língua portuguesa como Fernando Pessoa, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Carlos Drummond, Manuel Bandeira e Cecília Meireles, a grande descoberta para mim foi a poesia concreta de Augusto de Campos, Décio Pignatari e Haroldo de Campos e o neoconcretismo de Ferreira Gullar. Curiosamente, compus o meu primeiro poema “concreto” antes de ver/ler/ouvir dizer ou falar do concretismo, que virou a dominar boa parte dos meus estudos de pós-graduação.
Esse “corte cinematográfico” a qual você se refere deve se relacionar, portanto, com o conceito do ideograma utilizado tanto na poesia concreta quanto no cinema através da técnica de montagem, que por sua vez, na sua forma “intelectual” ou “dialética” desenvolvida por Eisenstein, se baseia no procedimento do haicai japonês, cuja estrutura corresponde ao modo de escrita da língua japonesa e chinesa: a ideografia.
O meu interesse pela escrita ou escritura visual, ou pela visualidade da escrita, me levou a estudar e pesquisar a relação complexa entre a palavra e imagem durante o modernismo, que é presente em escritores como Marcel Proust, James Joyce e Virgínia Woolf, e em pintores como Pablo Picasso, Georges Braque, Paul Klee e René Magritte, entre outros. Ao buscar os fundamentos de uma escrita ou linguagem visual e moderna, tive a revelação de que tanto a fotografia quanto a cinematografia constituíam formas ou modos de escrita também. Comecei a ver e ler essa escrita “gráfica” em fotógrafos como Man Ray e Robert Bresson e em cineastas como Sergei Eisenstein, Jean-Luc Godard e Glauber Rocha. Inclusive, diversos teóricos do cinema, como Eisenstein, Alexandre Astruc, André Bazin, Jean Mitry e Cristian Metz, pensam o cinema como uma forma ou um modo de escrita. Possivelmente fui influenciado por toda essa conjuntura de estudos, ou simplesmente porque cresci vendo filmes e videoclipes de música!
A: Você mexe com os ismos da nossa esfera cotidiana. Assuntos que são pautas tanto de uma mídia da TV ou jornal quanto pautas nas redes sociais. Como a poesia entra nestas pautas, depois de tanta polarização e debate sobre estes assuntos midiatizados?
Gringo: Apesar da minha intelectualidade pretensiosa, valorizo o mundano e o cotidiano. O que vale a teoria sem a prática se todo ideal não é nada real? Penso que pensa-se pouco o mundano e o cotidiano, e os que o pensam, pensam de maneira parecida.
As mídias contemporâneas debatem vários pontos de vista de forma exclusiva embora agregadora. As redes sociais compartilham diversas perspectivas de modo inclusivo embora segregador. Por um lado, uma mídia hegemônica e homogeneizante. Por outro, uma mídia popular e tribalizante. Em ambos falta a crítica de si mesmo e o diálogo com o outro, e sobra o discurso superficial e parcial. Sem comentar que as grandes mídias são veículos imperialistas ou colonizadores do capitalismo atual. Qual é a diferença fundamental, afinal, entre a Globo e o Facebook?
A poesia deveria ou poderia ser um outro modo de pensar: uma forma de interpretar criticamente, de ver nitidamente, de refletir profundamente com ideias mas sem ideologias. A poesia “entra” para interagir com o mundo presente, se tornando um outro meio de comunicação ou expressão. O que está em pauta? A poética da vida, a poesia do dia-a-dia!
A: Fale-me um pouco de seu trabalho de tradutor. Como é sua prática?
Gringo: O meu trabalho como tradutor é paralelo à minha vocação de poeta. Comecei a me interessar pela tradução por causa da teoria e prática da transcriação dos irmãos Campos, e depois conheci o poeta e tradutor Rodrigo Garcia Lopes, que me fez ver a importância da tradução para a formação de um poeta.
Logo saíram as minhas primeiras tentativas amadoras de traduzir alguns poetas prediletos da literatura brasileira, como António Cícero, Arnaldo Antunes, Augusto de Campos, Carlos Drummond de Andrade, Cecília Meireles, Décio Pignatari, Ferreira Gullar, Haroldo de Campos, José Lino Grünewald, Oswald de Andrade, Paulo Leminski e o próprio Rodrigo Garcia Lopes. Depois comecei a publicar algumas dessas traduções, agora revisadas e aprimoradas, além de tentar novos desafios como poemas “maquinais” de Alexandre Guarnieri e obras seletas de Carlos Nejar. Também acabo de publicar traduções de poetas norte-americanos como Allen Ginsberg, Langston Hughes e William Carlos Williams, além de latino-americanos como o mexicano Octavio Paz e a dominicana María Palitachi.
Durante esse processo, aprendi e entendi que a tradução pode ser uma forma de reescrever ou até recriar o poema em outra língua ou linguagem. Assim, ao traduzir um poema como “traduzir-se”, de Ferreira Gullar, eu me sinto como se eu estivesse me transformando no poeta ou autor do poema. É como se eu incorporasse o chamado “eu lírico”, a voz da poesia em questão. No caso da prosa, já comparei esse processo à mediunidade: é como “baixar o santo”, que é o narrador. E como na antropofagia, a cada vez que traduzo um poema eu incorporo as suas qualidades, domino a sua técnica, me aproprio da sua linguagem. Eis a minha teoria e prática da tradução.
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