Você está perdendo um sentido. A visão. Em pouco tempo esse texto só poderá se apresentar a você por meio da memória ou pela voz e respiração de outra pessoa, esse texto e todo o resto do mundo, para o qual você foi educado (fomos) visualmente e que se torna a cada dia mais ardente.
A premissa de Sangue no olho, romance de estreia da escritora chilena Lina Meruane no Brasil é no mínimo desconfortável. A protagonista, homônima da autora, é uma estudante latinamericana nos Estados Unidos, no começo de um relacionamento com o bofe ideal Ignazio; o livro parte de uma situação real vivida por Meruane e descamba em quase 200 páginas do que só consigo definir como um livro de “horror-pornográfico”.
Lina, a personagem, sofre de uma doença que lhe causa pequenos derrames no globo ocular, enchendo de sangue seu campo de visão, manchando o mundo de um bordô turvo a conta gotas num relato de “palavras ensanguentadas por toda parte”; filha de médicos, adquiriu desde cedo a fixação por relatos de erros médicos, assunto de mesa de jantar. A possibilidade de tornar-se objeto de seu próprio vício a enche de medo, uma hipocondria pelo remédio que falha, “sabendo que iam me operar mas que a cura não existia”. Essa tensão do inevitável é o que move toda a narrativa, Lina está obcecada com sua condição, viciada na própria doença, tomada pela ideia de que precisa “aprender a estar cega” e essa tensão não sai de cima, quase nunca, tudo o que se ouve ou se diz em Sangue no olho é sobre um olho em processo de inutilização pelo sangue. É a obsessão pelo desconforto de forma crua, com detalhes sobre procedimentos e possibilidades que dão ao leitor a consciência de enxergar (essa, vizinha à consciência de perder); há uma paquera permanente com a literatura de terror e com o suspense, uma tragédia sempre prestes a acontecer, anunciada, um gome médico estilo Clive Barker, navalha nos olhos como em O Cão Andaluz. E o sangue, a visão por um triz, perdida por qualquer descuido, que “até mesmo num beijo apaixonado as veias podiam se romper”.
Como no terror, Sangue no olho é um romance com forte apelo sinestésico. Como em O Perfume, clássico romance “olfativo” de Patrick Suskind, Lina Meruane bolina os sentidos do leitor, principalmente no primeiro terço da narrativa, nossos sentidos comunicam informações terceirizadas, filtrada pela ausência eminente de um outro, mas sem ilusões mattmurdockianas, “luzes vermelhas acendiam em mim por toda parte: a palavra cuidados ardia”, um city tour por Santiago com uma guia cega, “deixo a minha memória no piloto automático e vou lhe dando instruções tão precisas que eu mesmo me surpreendo”, mostrando coisas que já não pode mais ver.
O horror aqui está nessa obsessão narrativa e no compartilhamento da catástrofe eminente, na possível morte social, no rearranjo total da vida que provoca gasturas em quem está, afinal de contas, usando a visão pra conhecer a trama. Lina ouve audiobooks dos quais não se sabe o nome ou se lhe afetam de alguma forma, o mundo confortável da literatura num novo meio insípido, desapaixonado, prenunciando o fardo de todas as coisas. Nisso o projeto gráfico, assinado por Arthur Vergani e Gabriela Castro soma. O livro começa com as páginas brancas e vai se manchando de cinza, chegando ao final com um cinza escuro que pouco contrasta com o preto da tipografia, como se o leitor, já chapado pela obsessão da narradora, ficasse ele mesmo meio cego.
E tem a pornografia. Não por ser algo constante na minha cabeça, mas porque, entre todas as formas de ficção, somente a pornografia e os videogames vivem num presente constante. Não somente o tom documental, no qual, mesmo os pequenos flashbacks e as divagações tratam do olho ensanguentado, o romance de Meruane “não sai de cima”. Não há cortes temporais, os anúncios de capítulos, lacônicos, raramente representam de fato uma transição temporal, que me lembra os antigos gibis do Tex Willer, que tinha pequenas vinhetas para marcar mudanças de volume, mas não de tema ou tempo. Sangue no olho não sai de cima do problema e não sai de cima da personagem, é uma narrativa pornográfica por não falsear um tempo com ausências que organizam o entendimento, como aqui:
“O que está acontecendo com os meus olhos, doutor? Ah, disse ele, alongando o a com a voz de oráculo ou de iridólogo ou simplesmente de oftalmologista charlatão. Estas retinas são minha obra de arte.
VEIAS
Mas sua obra de arte ficou mal feita, disse eu, exasperada, e acima de tudo espantada de que ele não tivesse visto”
…
Se o mundo contemporâneo é o mundo de superestimulação visual, a visão é o sentido que não se pode perder. Lina Meruane parece querer nos dizer isso o tempo todo, lembrando, obsessivamente, que diante do medo, não passamos de um “animal querendo deixar de ser um”.
Conversei com a autora por e-mail sobre algumas das inquietações da minha leitura, e mais. Entrevista abaixo.
- A leitura do seu livro lembra em boa parte uma história de terror, com uma personagem fincada no desconforto da possível cegueira. Você tem alguma associação com esse gênero?
Nenhuma relação com esse gênero, sequer como leitora, mas estou completamente de acordo com sua com sua percepção: ao escrever a novela não sabia como ia terminar, compreendi, logo no início, que iria nessa direção: o terror.
- Seu livro causa reações físicas nos leitores e usa, particularmente no primeiro terço, de um forte jogo de sinestesias. É preciso que o leitor também “aprenda a estar cego”? Como funciona isso na literatura no mundo do superestímulo?
Minha escrita se apoia em todos os sentidos, a mera questão visual sempre me pareceu insuficiente. Talvez por isso eu me havia eu tenha me prontificado a escrever um romance literalmente negro, um romance que usaria somente a audição, o olfato, o sabor e as sensações táteis. O universo da cega deveria carecer de cor. Isso eu pensava, mas a medida que escrevia via que o romance era, paradoxalmente, muito visual, e parei para pensar no que estava acontecendo. O que vi foi que a memória de um cego recente continua sendo visual, continua completando o que falta. Compreendi também que toda escrita é cega, porque o que se narra é mediado pela memória (e a ficção é uma forma de preenchimento). Os leitores, então, encaram o mundo dos romances como cegos e imaginam o que lhes é contado, como se fossem cegos imaginativos. E em relação à tua pergunta, que é muito sugestiva, não estou segura: será que com tanto estímulo perdemos a capacidade de imaginar?, ou será que o superestímulo não nos estimulará a imaginar coisas novas? Ou ambos?
- Sangue no olho é construído num tom quase documental/”pornográfico”, sem interrupções e com raros saltos temporais. Você pode contar sobre a construção do livro?
Na verdade, o romance usa uma linguagem direta, crua e obscena, no sentido etimológico da palavra: buscando, por um lado, mostrar o que se encontra “fora daquilo que é visto”, e por outro, “revelar algo sujo”. Me interessa aquilo que não se vê, seja porque se esconde ou porque não se vê bem. A literatura sempre retorna ao mesmo para nos indicar o que não vemos, ou o que, de tanto vermos, já não percebemos como verdadeiramente é. A literatura recupera a verdade em detalhes, revela e examina essa sociedade que se esconde atrás do que se mostra como limpo. No caso deste romance, queria usar uma linguagem de bisturi, que restasse nada ao leitor, que o obrigasse a olhar. Quanto à construção do romance, que é diferente das anteriores, o fato de que eu tinha muito pouco tempo nessa época, duas ou três horas por dia, nas quais revisava o trecho anterior e escrevia o novo, tudo muito intenso… cada trecho era pensado como um conto curto, uma cena redonda que eu poderia terminar em uma sentada. Isso me permitiu saltar do presente ao passado com certa liberdade, me permitiu o movimento da primeira à segunda pessoa e, sobretudo, me permitiu a tensão do romance.
- Você é professora de cultura latino-americana nos Estados Unidos. Colocando em perspectiva, podemos dizer que existe uma “literatura latino-americana”? Se sim, quais suas particularidades?
Não existe, do meu ponto de vista, uma literatura continental, tampouco nacional, nem mesmo existe uma literatura de classe ou de gênero. Vejo, sobretudo nestes tempos, uma variedade enorme na produção literária e artística, buscas particulares, e isso se deve ao fato de que circunstâncias biográficas e influências culturais são extremamente diversas e que hoje mais pessoas acessem a literatura (antes um lugar restrito, as letras eram majoritariamente coisa das elites e dos homens). Embora isso perturbe certas expectativas do mercado editorial, que busca definições e nichos específicos, me parece um momento muito interessante e estimulante.
Comente!