Eu imagino o êxtase que o público presente num dos últimos shows da genial cantora Billie Holiday, nos jurássicos anos de 1950. Era a urgência de uma artista que era genial, mesmo a beira de seu precipício pessoal.
Talvez a sensação com o primeiro show da cantora Amy Winehouse no Brasil não seja tão fatalista, mas a porção “encantamento diante de um possível precipício” é a mesma. E a ansiedade correspondia a confirmação de que a polêmica cantora inglesa é mesmo a melhor coisa surgida no cenário musical no turbulento decano 2000-2010.
Para frustração de muitos presentes, Amy destilou seu talento em apenas pouco mais de uma hora de show, num HSBC Arena, praticamente lotado. Mas, de modo geral, foi o necessário para confirmarmos que o talento ali é orgânico e mantém sua capacidade de impressionar.
A noite começou com o show de abertura da norte-americana Janelle Monae, ainda pouco conhecida por aqui, mas bem incensada pelo mundo, principalmente pelo extraordinário e original álbum The ArchAndroid, que vem com a deliciosa Tightrope e outras músicas muito boas. Janelle, pequenininha em seus 26 anos, impõe0-se com uma presença de uma veterana, extravasando suas referências que iam de James Brown, a cibernética e Star War, em divertidas e contagiantes performances teatrais. A habilidade vocal da menina é impressionante e ela segura muito bem a adrenalina que nos remete do palco. Monáe, de calça e gravata pretas, camisa branca e seu já conhecido topete dançava como uma versão feminina e jovial de James Brown, com passos e trejeitos que pareciam copiados do cantor morto em 2006. Cold War e Tightrope, seus hits mais conhecidos e vigorosos levantaram a já enérgica platéia carioca. Outro ponto alto foi sua versão “voz e guitarra” de Smile, do Chaplin, num dos momentos mais intimistas da noite.
A jovem cantora se despede deixando a sensação de nos ter transportado para o caloroso universo black do Motown, com energia e suingue de uma bem vinda e antenada convergência de gerações. É uma artista que ainda vai nos dar muito em sua jornada. Para muitos, o melhor show da noite.
Não chega a tanto. Em sua concisa apresentação de uma hora e sete minutos, Amy comprovou que sua inconsequência pessoal é usada assertivamente para sua arte. Apesar da complicada acústica do HSBC Arena e do problemas de volume no microfone, a pop star inglesa mantém o vigor de sua voz e a casa perfeitamente com a densidade nada clichê de suas músicas.
A cantora subiu ao palco depois de 35 minutos de atraso num vestido justo, de decote generoso, e estampa de tigresa. Logo de início, disparou os sucessos Just friends, Back to black (cantada em coro pelos mais de 10 mil presentes) e Tears dry on their own (uma de suas obras-primas que funcionou muito bem ao vivo) em sequência, suficiente para ganhar a atenção da arena, que só encheu momentos antes do início da apresentação.
Um show de uma artista como Winehouse é grande em seu viés sensorial e dependente da persona de sua artista. Amy é bizarra em sua mise-en-scéne particular (dentre suas goladas de cerveja e gargarejo com água, além das dancinhas esquisitas). Parece estar em órbita de si: ri, gargalha e se resigna de coisas que só ela sabe ou encaixa sentido. Acaba que é interessante analisá-la pelo ponto de vista do que ela é. E a afinação e potência vocal ajudam nesse relicário momentâneo que sua apresentação evolui.
Não preciso nem dizer que a banda, que dá um suporte literalmente para a diva, é de uma competência londrina. Formados pelo baixista Dale Davis, Hawi Gondwe (guitarra), Troy Miller (bateria), Sam Beste (teclados), Henry Collins (trompete), Frank Walden (sax barítono), Jim Hunt (saxofone), Heshima Thompson e Zalon Thompson (backing vocals), este último são concedidos a oportunidade de cantar solo as músicas Everybody here wants you e What’s a man going to do.
Logo depois, Amy retorna cambaleante para fazer seu “gran finale” com o seu hit-mór Rehab, para delírio do lugar. I am no good, foi a preparação para o estouro com a ótima Valerie. Love is a losing game, Me & Mrs. Jones e You’re wondering now (esta já sem Amy no palco) apareceram no bis e marcaram a repentina despedida da artista.
Realmente o show poderia render mais, mas Amy é uma cantora que vive sob seus limites, inclusive artísticos. Ser fã de sua obra é ter ciência desse agravante. Assim como aqueles que vivem a vida como se cada dia fosse o último, ela leva essa teória à prática até em seus shows, onde explora ao máximo seu(s) talento(s) a tempo (próprio) de tentar ser feliz.
Comente!