O gênero folhetinesco das novelas não é subestimado a toa. Sua construção dramática é esticada e diluída ao extremo, seus discursos, geralmente, são retrógrados e sua dimensão artística muitas vezes é reducionista. Mas o gênero é uma paixão nacional, mesmo para àqueles que a encaram superficialmente ou de forma sazonal. Existem alguns nomes por trás da teledramaturgia brasileira que conseguem transcender ou mesmo, simplesmente, relativizar a gama de clichês que o veículo carrega. Dos mais antigos (e mesmo dentro de suas previsibilidades), Gilberto Braga é um que ainda injeta um pouco de destreza nessas amarras. Mas é o sangue novo do autor João Emanuel Carneiro que fez com que a novela Avenida Brasil imprimisse uma espécie de unanimidade espacial no universo das novelas globais.
João é um autor experiente do cinema. Esteve por trás dos roteiros de filmes clássicos como Central do Brasil e A Partilha. Acabou por levar toda a sua sanha amoral e humanística para as telenovelas. Primeiro estreou com uma protagonista negra, numa novela atual (uma revolução no gênero, acredita?), em Da Cor do Pecado. Depois fez absurdo sucesso no complicado horário das 19h com outra comédia mais ácida e não menos crítica com Cobras e Lagartos, onde deu a Lázaro Ramos, seu melhor papel em TV. Porém foi na marcante A Favorita, que esboçou o que viria ser o nome renovador na seara de novelas brasileiras. Com uma estrutura invertida, cenas cinematograficamente construídas (a revelação de que a mocinha na verdade era a vilã foi uma das coisas mais bem filmadas que o Brasil já tinha visto) e uma certa astúcia nos diálogos, João fez uma novela de nível, principalmente frente as séries americanas vigentes na época (vale ressaltar sua criação menos badalada, a série A Cura). E eis que quatro anos depois, ele monopoliza a atenção do país com Avenida Brasil, uma novela que nem parece novela.
Não parecer novela é um mérito justamente pelo próprio gênero ser equivocado em sua formação. Ciente disso, o autor foi alinhavando as sua pretensões sob as vestes do folhetim, mas ancorado nos ganchos, algo que o escritor francês Balzac entendeu e formatou sua obra. Com a tal ascensão da classe C, dialogou com o hoje e criou um subúrbio para além da caricatura ou realismo, mas um subúrbio afetivo, como eram as abstrações estéticas de Fellini. E criou uma vilã marcante mas inteiramente humanizada, algo que o gênero tem dificuldades de gerir. O elenco ajudou (Adriana Esteves foi um assombro e Débora Falabella com uma precisão notável) e a novela pegou. Mas não pegou com outras. As classes se misturaram no gosto dessa vez. Todas as classes, todos os nichos comentavam e pensavam a trama. Era o poder do veículo encontrando o preciosismo cinematográfico do autor e da direção (Amora Mautner e Jose Luiz Villamarim deram um show numa direção preocupada com a luz e o tom como se fosse cinema). Era uma novela comentada tanto por Arnaldo Jabor como pela sua avó. O universo da vingança confrontando com a razão foi embasado pela universalidade dos termos, e foi assim que Avenida Brasil saiu do lugar comum. Justificando seu conceito e sabendo jogar a máxima do folhetim.
Claro que a novela teve (notáveis) defeitos e todas as novelas, sendo escritas por Shakespeare ou dirigida por Scorcese terá. São oito meses para preencher de história plausível e alimentar uma audiência ora conservadora, ora condescendente. Mas os caminhos que João Emanuel vêm abrindo para impor sua criatividade e (por que não?) visão de mundo, podem ser animadores. Não acredito que as novelas ainda terão um peso artístico mais firme que o cinema, como acontece hoje com as séries americanas. Mas acredito que, para além de ascensão de classes, a novela contribuirá para uma ascensão de ideias, indo diretamente influenciar uma apática cultura de massas.
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