Resenha de World of Darkness: Slasher (WW55555, 259 páginas, US$ 31,99)
Hunter: The Vigil não é um jogo sobre esperança.
Caçadores não se baseiam em visões de um mundo melhor. Eles não recebem chamados divinos nem são imbuídos com poderes para auxiliá-los na Vigília. Imagine o oposto. Eles são forçados a confeccionar seus próprios métodos, ideais e armas para sobreviver sendo que, ironicamente, nada objetivo os impele a continuar de pé. Há algumas poucas exceções, sim, mas basta ler a descrição dos Lucifuge um pouco além do “herdaram dons infernais” pra perceber que o buraco é mais embaixo. Esse é um sistema que foi feito pra uma estrutura um pouco menos tolkeniana e um pouco mais palanhukiana. Caçadores não possuem desculpas como a insanidade brutal dos lobisomens nem a constante inebriação paranóica de changelings. Alguns morrem antes de presenciarem seus atos surtirem efeito, outros vivem o suficiente para perceberem o quão ínfimas suas conquistas são. Eles não são bastiões de honra e bravura: se assemelham mais a animais encurralados aos quais resta apenas atacar ou morrer; ao morador de cortiço que ouve um tiro na noite e começa a rezar. Usando os próprios motivos de luz e sombra inerentes ao cenário, são como uma garota assustada do filme de horror.
Viu o namorado ser retalhado pelo monstro com a máscara, toma uma lanterna em uma mão, a pá em outra e sai soluçando em busca de seu algoz.
Nós sabemos bem que logo, logo a pilha da lanterna vai acabar.
E não há poder, tática ou ideal que irá salvá-la.
Falando em filmes de adolescentes nus que são despedaçados por retardados mascarados, codinome slasher movies, é estranho como não se veem esses algozes peculiares retratados com frequência em jogos de horror. Quando o são, costumam se revelar na verdade pertencentes a uma das espécies de monstros comuns, seja como um vampiro enlouquecido, uma policial possuída ou um demônio com uma quedinha por casacos de pele. Humana. Mas esses seres, esses slashers, raramente são um tipo em si. Repare que “raramente” substitui nunca simplesmente por preferir deixar uma margem de erro, mas eu nunca vi esse tipo de antagonista tratado como um fenômeno singular e independente. Vi jogadores interpretando personagens com comportamentos curiosamente semelhantes, mas esses costumam ser os protagonistas, os caras que salvam o mundo. Esses tem os dois zeros na frente do nome, porém slashers, os dementes com sede de sangue pelos quais torcemos (admita) em vários dos piores e melhores filmes que existem… Eles são maus, certo? Cruéis, sádicos, violentos, inconsequentes, imorais, amorais, profanos, calculistas e quase sempre fascinantes.
Para entender do que exatamente se trata Slasher, suplemento de Hunter e um dos melhores da White Wolf, você precisa tornar o conceito um pouco mais abrangente. Não se restrinja a Michael Myers, Jason, Freddy e Leatherface. Inclua Patrick Bateman, Hannibal Lecter, Catherine Tramell, Jigsaw, o cara de Se7en, Norman Bates, Blackburn e, meu predileto, Dexter. Aviso aos navegantes: Slashers não são psicopatas. Os vários autores que escreveram o livro tiveram o cuidado de evitar o termo, usando-o apenas poucas vezes e na descrição de ações, não de personalidade. Psicopatia ou Transtorno de Personalidade Antissocial é um tema complexo e, embora alguns de seus representantes estejam entre os slashers (e aqui menciono Dexter nova e arbitrariamente), o objetivo do livro não é discutir psicopatologia, mas sim apresentar os antagonistas mais intrigantes e perigosos que o caçador pode encontrar.
E oh, eles são tão parecidos com os vigilantes. Assim como em todos os suplementos da linha, há escondido no livro um pequeno parágrafo que compara o antagonista ao protagonista e mostra como caçador e caça se assemelham e confundem. Neste caso, se descreve um reflexo escuro da Vigília. Caçadores carregam suas pequenas velas para manter a escuridão longe, mas slashers… eles se contrapõem à luz para criar uma longa, ampla e eterna sombra. Eles são o caçador em seu pior e seu melhor, tentação e abjeção encarnados. Quando o caçador olha para o abismo, é o slasher que olha de volta para ele. E quando o vigilante racionaliza métodos brutais, assassinatos, raptos, incêndios criminosos; quando seus ideais se perdem entre os espirros de sangue do suspeito que ele marreta; quando os mesmos ideais se tornam absolutos a ponto de justificar a inclusão de família, amigos e conhecidos dos “monstros” entre as presas; quando a caça se torna necessidade, lazer e razão de ser… É quando a vela se apaga e o caçador descobre que ele mesmo é quem está no fundo do abismo.
Changeling é o conto introdutório deste fantástico livro, e cai como uma luva. É provável que a maioria dos leitores indague onde está a conexão dele com slashers, já que os eventos do enredo são comuns em uma mesa de jogo. A displicência com que os protagonistas fazem o que fazem – e o fato de serem caçadores – não ajuda na imagem que se tem do psicopata nu banhado em sangue, gargalhando enquanto persegue uma prostituta escadaria abaixo portando uma motosserra. A verdade é que a maioria dos personagens de RPG agem, em certos aspectos, como psicopatas. Powerkill, embora moralista demais pro meu gosto, existe pra provar isso. Sim, é só um jogo, diversão, leveza, escapismo e caubóis espaciais de salto alto, mas o Mundo das Trevas é um cenário que procura justamente reproduzir o mundo contemporâneo. Quando eles dizem “igual, só que um pouco mais escuro”, não significa que sair por aí de katana, sobretudo e .12 em aventuras épicas é justificável (de acordo com a proposta). Eles se referem ao fato de, aqui, questões morais pesarem um pouco mais. Irônico como o oposto costuma acontecer, e sua reação a esse conto pode servir como termômetro na hora de perceber qual estilo de jogo é o seu, e quais temas que o livro traz você vai aproveitar melhor.
A introdução deixa bem claros o conteúdo e intenções do livro, além de comentar que “jogando como um personagem slasher somos capazes de experimentar uma excitação proibida, forçar além dos tabus culturais de violência[…]. É ,talvez, uma ficção incômoda que vale explorar”. Na própria introdução vemos o problema de Slasher: ele possui múltiplas personalidades. É muito bem escrito, possui conteúdo de alta qualidade, mas os diferentes autores acabam por contradizer uns aos outros através do livro. Isso acontece mais em trechos retóricos, mas mesmo assim prejudica um pouco (slashers são superficiais – slashers são complexos; slashers são máquinas de matar – slashers ainda são humanos). Fora isso, você vai perceber o esforço feito por alguns autores para evitar moralismo (“do bem” e “do mal”, aquela visão de crianças e dogmatistas) e o de outros para retratar slashers como demônios encarnados. Felizmente, o mais comum são comentários capazes de agradar a gregos e a troianos, como o sobre slashers que combatem outros antagonistas: “Isso não significa que é saudável – não, o impulso irrefreável de matar qualquer um ou qualquer coisa é doentio. Mas alguns personagens serão capazes de refiná-lo, dirigí-lo a alguma direção positiva.”
Outra questão, que na verdade é mais um sintoma do problema narrado acima, é o fato de alguns autores partirem do princípio de que se está falando sobre slashers como personagens de jogadores, enquanto outros se referem a eles como ininterpretáveis. Deixemos explícito: slashers podem ser personagens de jogadores. Embora esse livro seja, sim, dependente de Hunter: the Vigil, você pode muito bem jogar crônicas na pele desses adoráveis vilões sem nem mesmo precisar de caçadores.
Após um típico e simpático conto de aberração que chacina grupo de adolescentes no lugar errado na hora errada, Carvin’ Jack, temos o primeiro capítulo de fato do livro. And There Was Blood traz um panorama de slashers através de história, apresentando um caso para cada época e discutindo ganchos e temas pertinentes. Assim, representando a Antiguidade você tem uma versão alternativa da Torre de Babel, uma discussão sobre as possíveis origens de slashers e o peso que isso pode ter. Imagine um cardeal descobrindo que slashers são prova viva da teoria evolutiva, ou um cientista descobrindo que um Maníaco é evidência do criacionismo. É o tipo de coisa que estraga o fim de semana.
E então é feita uma afirmação complicada: heróis da mitologia clássica são psicopatas. Sansão, Aquiles, Perseu e todos os outros. Complicada por estarmos tratando de textos que provavelmente (margem de erro) não narram eventos com objetividade. Complicada por estarmos falando de psicopatia. Mestres, evitem o termo. O conceito. Há uma chance enorme de vocês não saberem o que é essa condição, ou de possuírem uma concepção errônea. Pega mal narrar uma aventura em Chicago sem nem ao menos saber o nome dos distritos, não? O mesmo vale aqui. Se quiser abordar o tema em suas crônicas, estude o assunto, muito bem (ou seja, leia isso, isso, isso e isso, não isso nem isso), e seja cuidadoso ao introduzi-lo. É legal falar que RPG estimula leitura, que RPGista costuma ir atrás de mais assuntos, mas então façamos jus ao nosso próprio mito. A alternativa são jogadores saindo por aí achando que psicopata é sinônimo de assassino ou demente. Isso é perigosamente próximo de gente indo na TV pra falar que RPG é invocação demoníaca ou que RPGistas são marginais. Lembre-se que existe um metajogo, existem pessoas sentadas numa mesa, existem questões abordadas, opiniões expressas. A ideia de que RPG é escapismo despretensioso é falaciosa, então saiba introduzir questionamentos e não espalhe besteira quando o assunto for sério. Uma coisa é um personagem do jogador achar que psicopatas são maníacos com machadinha, outra é o jogador achar. Saiba a diferença e use-a.
Roma. Algumas décadas a.C, temos a história da Bruxa de Nola e um trecho que comenta o preço que se paga para derrotar um slasher. Seja uma mão, um sobrinho, uma memória, muitas vezes é necessário um sacrifício. Até que ponto ele é válido e quanto o seu personagem está mesmo disposto a pagar?
Um pulo para a esquerda, um passo para direita e vamos falar sobre poder e tortura, tendo como pano de fundo uma bela história relacionada à inquisição. É possível um presidente, CEO ou ator slasher? Como ele lida com seus impulsos (afinal, ele sente vontade de matar, não de mandar matarem)? Como um caçador pode se aproximar de alguém tão visível, e como este lida com a exposição? Já na parte de tortura temos uma descrição do modus operandi (MO) do infame Tomas de Torquemada que ensina que a tortura começa muito antes dos gritos. É clássica a seguinte cena: garota descobre seu namorado morto, vê o algoz, sai correndo berrando, tropeça (e o slasher continua a perseguindo vagarosamente), encontra abrigo, olha pra trás e morre. Quando isso está em um filme, é para entreter os espectadores. Passando pra jogo, temos que lembrar que slashers possuem MO. Ele provavelmente plantou o cadáver naquele local, fechou todas as saídas menos uma, distribuiu armadilhas pela rota de fuga, destrancou a porta do abrigo e calculou o timing certo de toda a situação. Ou simplesmente saiu andando por aí e enfiou a faca na primeira coisa respirando que viu pela frente, o que não deixa de ser um método. Em jogo, isso se traduz em preparação, compra de equipamentos, treino de táticas, aprendizado de técnicas e por aí vai. Toques sutis que enriquecem o enredo.
Isolação é o tema do século XVIII. Sejam homens presos em um navio, perdidos nos desertos do Iraque ou largados em áreas abandonadas da cidade, é sempre interessante uma crônica com esse clima de Madrugada dos Mortos. Troque as hordas de zumbis por slashers entre os próprios personagens, faça a família de canibais emboscar caçadores em uma locação inóspita. Cenários pós-apocalípticos caem bem com esse tema e, se sua crônica estiver saindo errado (jogadores desinteressados, enredo que não agrada), é o tipo de reviravolta capaz de dar um novo fôlego.
Pra fechar a viagem entramos na Era do Desespero, com direito a dois contos: um trata de uma cópia declarada de Charles Manson (porém sem ligações com a cientologia, tentativas de causar uma guerra racial, estar preso ou o novo culto que ele formou recentemente) e o interrogatório de um policial que matou a sangue frio um slasher com amigos poderosos, o Clube da Caça. Seguem discussões sobre cultos de personalidade, o risco de parentes e pessoas próximas dos caçadores acabarem envolvidos em um destes e o valor de contatos quando se é um assassino em série. Até aqui, aliás, há menção a uma série de assassinos que realmente existiram. Apesar de possuir uma seção de fontes extremamente pobre, o livro traz várias referências e ganchos que fazem seu valor triplicar para qualquer um com um mínimo de curiosidade.
Slasher é um suplemento de Hunter. Um suplemento sobre antagonistas. Podem ser interpretados por jogadores, mas não deixam de ser antagonistas aos olhos dos vigilantes. Inevitável então que se fale sobre conflitos entre caçadores e predadores. A descrição, ainda no mesmo capítulo, é dividida de acordo com as diferentes esferas (tiers) e organizações (sejam compactos ou conspirações). A tempo: Slashers não são exatamente um fenômeno coerente. Para quem lê o livro sim, óbvio, mas no jogo em si eles são definidos por suas ações, não por suas naturezas. Para os interessados, essa visão existencialista é compartilhada pela criminologia, que foi uma das maiores incentivadoras do estudo dos chamados “distúrbios sociais”. Voltando ao jogo, embora a Null Mysteriis tenha publicado (metaplot) um livro que chega a tratá-los de tal modo, para a esmagadora maioria dos caçadores eles são assassinos em série. Ponto. Claro que se um Lucifuge descarregar uma .38 em um Bruto e o maldito nem sequer tremer, perguntas serão feitas. A questão é que nem tudo é catalogado e estudado a fundo. Existem ameaças mais óbvias, mais notórias. Slashers, psicopatas, genocidas, assassinos em série… É tudo muito convoluto, as diferenças são tênues demais. Um vampiro é relativamente simples: ponha uma estaca em seu coração e ele trava; coloque-o no sol e ele queima; prive-o de sangue e ele entra em coma. Um slasher… Ele é humano. Ele é uma pessoa que mata e pode ser qualquer um. Ele não possui presas, não brilha no escuro, não foge da cruz. Você só o percebe quando ele age, e é como cada grupo pode vir a lidar com esses atos, não com esses personagens, que realmente aparece aqui. Isso, e como cada um pode se tornar um deles.
Destaque para:
(a) a nova organização disponível: Vanguard Serial Crimes Unit, ou VASCU, uma divisão do FBI que lida com assassinatos em série. Bastam três strikes para eles entrarem no jogo e só poderem ser tirados pela VALKYRIE. O gatilho, porém, é que seus agentes são sensitivos. Sejam candidatos ou veteranos da Agência, se for identificada capacidade psíquica eles são prontamente transferidos para esta que é uma das seções mais infames do FBI. A descrição do grupo é brilhante, consegue misturar fatos (como o projeto MK-ULTRA) e ficção sem criar algo estúpido ou com ar de “conspiração secreta que vai dominar o mundo”. Antes que me esqueça, eles trabalham para o FBI, o que significa que não são caçadores comuns. Não interessa quantos ou como o mago matou, eles não vão enfiar uma bala em sua cabeça mas sim coletar evidências, interrogar suspeitos, montar casos e todo aquele jazz. Estamos falando de lei aqui, então lembre-se que a corregedoria vai, ironicamente, cair matando se um suspeito for morto pelos agentes. Inocente até que se prove o contrário. No tribunal. A compensação é que, como disse, eles são sensitivos, então possuem acessos a habilidades que são descritas mais à frente. Se bem que o júri provavelmente não vai aceitar um “eu tive uma visão em que ele era o maestro de uma chuva de sangue” como evidência.
E o melhor: Caçadores, pra eles, são também definidos por seus atos. Vigilantismo é crime, e se uma célula matar mais de três logo vai se ver perseguida por agentes. Caso sejam presos, o jogo apresenta a possibilidade de comprar a liberdade se tornando um esquadrão suicida. O mesmo vale para quaisquer outros criminosos, entretanto, então é bem possível que os jogadores se vejam forçados a trabalhar com seus piores inimigos em missões das quais dificilmente saiam vivos.
(b) O Clube da Caça é um compacto formado por assassinos. Boa parte deles slashers, boa parte caçadores. Eles premiam seus melhores anualmente e flertam ocasionalmente com a Abadia de Ashwood. Excelentes antagonistas e uma das possibilidades de afiliação para seus personagens (mesmo que sejam caçadores – slashers tampouco se enxergam como “slashers”, mas como pessoas que matam. Caçadores matam. Ligue os pontos).
(c) Jack, o Estripador, aparece como um ex-membro da Abadia que supostamente foi assassinado ao renegar sua filiação. Algo aconteceu e ele continua de alguma forma existindo. Repare que eu disse “existindo”, e não “vivo”. Seja ele agora um fantasma, espírito ou pior, sinta-se à vontade para fazer personagens descobrirem em pesquisas que o MO de um assassino novo é idêntico ao de Saucy Jack.
O conto que antecede o próximo capítulo é o melhor do livro, escrito por Mike Lee. Aliás, todos são de autoria dele, um dos principais escritores de Demon: the Fallen que dá um show nesse livro. Palmas para a White Wolf pela escolha de um autor que não só tem boas ideias, como sabe traduzi-las com excelência (ao contrário de outros *tosse* Stolze *tosse*).
The Mask and the Knife é um capítulo gostoso de se ler. Ele trata da criação de personagens slashers – antagonistas ou protagonistas. É basicamente o mesmo procedimento que se deve seguir para criar um caçador, porém ao invés de profissão você tem a Vocação (Undertaking). Se o indivíduo foi um caçador, fique tranquilo que o livro descreve em detalhes como realizar a transição. Cada Vocação possui dois aspectos: o Estripador (Ripper) e o Flagelo (Scourge). A diferença está no escopo de suas habilidades especiais, os Talentos: o Gênio é capaz de calcular as ações de outrem com uma precisão que beira a premonição. Beira, porém não alcança. A habilidade do Psycho de distrair a vítima por exatamente tempo suficiente para matá-la, porém, é fora de série. Pode-se dizer que o Flagelo é a versão agravada (e “sobrenatural”) do Estripador. A contrapartida dos Talentos são as Fragilidades, defeitos que podem se provar fatais.
Cheguei a narrar uma aventura corrida de Hunter para Leandro, Cauê, Arthur e Fábio. Fiz algumas alterações para deixar o jogo menos letal (afinal os protagonistas eram novatos e os antagonistas seriam um Flagelo e um Estripador), incluindo pegar leve com a Fragilidade. Não faça isso. Pode parecer que não, mas está tudo já equilibrado. Parece exagero os flagelos possuírem dois defeitos fatais, mas os caçadores vão precisar explorá-los o máximo o possível para conseguirem sobreviver. Mesmo que sejam quatro deles contra um único Vingador, lembre-se dos filmes. Slashers sempre estão em maioria, principalmente quando sozinhos.
As Vocações abrangem os principais arquétipos. Em resumo:
– Vingadores se perdem em seu desejo de retaliação e vão atrás mesmo de quem não os prejudicou diretamente. É o marido traído que começa a eliminar todas as mulheres infiéis.
– Lendas são Vingadores que se entregam a suas próprias histórias e tornam-se os monstros que outros imaginam que sejam. Lendas não morrem, mas não tem controle sobre seus destinos, como o marido traído que começa a achar que todas as mulheres devem ser ensinadas a serem castas e passa a caçar todas as mulheres solteiras.
– Brutos são assassinos furiosos com quem não se pode argumentar. Possuem vestígios humanos, mas não enxergam mais pessoas como pessoas. Interagem somente para violentar.
– O Máscara perdeu qualquer traço de humanidade e é pouco mais que uma besta irrefreável. Nada pode pará-lo ou distraí-lo, salvo raríssimas exceções. Jason, sim?
– Encantadores não se destacam pela força ou pela inteligência, mas sim por matar através da confiança. Eles e sua versão Flagelo, os Psychos, são o mais próximo de psicopatas clássicos. Embora cativem qualquer um, são tão inumanos como Brutos. A questão aqui é que são capazes de emular (mas não sentir) com perfeição sentimentos e reações. Patrick Bateman é um perfeito exemplar.
– Aberrações são slashers deformados que costumam se unir a seus iguais e ressentir pessoas normais. Podem apresentar comportamentos animalescos ou quebrar tabus de propósito, como forma de auto-afirmação. Leatherface é dado como exemplo.
– Mutantes costumam já nascer deformados. Seus defeitos são muito piores que os de Aberrações, e não são muito mais que versões exageradas destes.
– Gênios e Maníacos são personagens muito interessantes. Hannibal Lecter, Jigsaw, Lex Luthor, Coringa: o intelecto a serviço dos desejos mais primitivos e selvagens. Extremamente perigosos, são capazes até mesmo de alterar a visão de mundo de uma pessoa com algumas poucas frases. O fim da minissérie Superman: Red Son pode servir como modelo do potencial de suas habilidades.
Suponhamos que você não tenha gostado dos Mutantes ou tenha uma ideia genial que o livro não cobriu. Sem problemas: surge uma minisseção com ferramentas para alterar e criar qualquer Vocação que quiser, tudo bem detalhado. Segue um trecho com méritos (pertinentes), táticas (para slashers, fazem terroristas parecerem pacifistas), regras para armas incomuns ou feitas em casa e armadilhas (com direito a cálculo de custo, eficiência, complexidade; excelente) e, finalmente, os obrigatórios novos Dotes. A novidade é a Teleinformática, marca registrada dos agentes da VASCU. Você não vai precisar de Second Sight para jogar como um deles.
Mais um conto de Mike Lee precede terceiro e melhor capítulo, Many Shattered Minds. No fim dele você encontra 18 slashers que, ao contrário de vários dos personagens de fim de livro encontrados em outros volumes da White Wolf, são interessantes. Se você for mestre ou jogador vai gostar de ler suas histórias e descrições mesmo que não tenha a mínima intenção de usá-los. Também é apresentado um cabal de slashers, a Sutil Associação de Colecionadores, que embora possua uma descrição mais curta tem tanto potencial quanto o Clube da Caça.
Tudo muito bom, mas aqui a primeira parte é que realmente importa. Há cinco ensaios, cada qual discutindo um aspecto desse tipo de personagem e seu uso em jogo. A transição de texto pra texto é suave e todos são muito, mas muito bons. Bem melhor do que os capítulos de Narrativa tradicionais em livros da White Wolf, já que ao invés de um grande capítulo abordando várias questões de maneira esparsa você tem cada autor se dedicando a um único tema de modo eficiente e preciso. A quantidade de material aqui é simplesmente absurda.
Tudo começa com Versus, escrito por Jess Hartley. Ela é uma das que não apoia muito a ideia do slasher como protagonista, e fala sobre diferentes aspectos da interação entre caçadores e slashers. Tem seu clímax quando discute os rastros que os slashers deixam para seus potenciais caçadores. Em quatro páginas, são comentados os principais elementos de uma cena de crime, as diversas formas que podem ser encontrados e possíveis destinos dos restos mortais das vítimas. O objetivo aqui é fornecer ao narrador ferramentas para saber como tornar certas cenas impactantes e como limitar esse efeito de acordo com a preferência dos jogadores. O tom é extremamente objetivo e racional, o que chega a destoar em um sistema animista, mas o jorro de informações é mais do que suficiente para satisfazer a qualquer um. As informações (informações, não regras) concernem desde o processo de decadência do cadáver até um resumo de análise de manchas de sangue (e há algumas aulinhas sobre isso bem interessantes aqui no site oficial de Dexter). Se você for o tipo de mestre que usa descrições como “tá, vocês entram no quarto e tem sangue”, uma boa lida no texto vai refinar sua narrativa. Aliás, é um trecho que vale para qualquer mestre de qualquer sistema: uma lição básica de cenas de crime que raramente é encontrada em suplementos de RPG.
O texto, porém, naufraga feio quando a autora considera a possibilidade de redenção. É o tipo de assunto que basicamente não tem espaço, até por durante todo o livro se comentar o caráter efêmero e necessariamente trágico do slasher: ele vai morrer ou ser preso muito em breve. É só cometer o mínimo deslize, e isso vai ocorrer. Fora isso, os próprios impulsos do personagem o impedem de se reformar e, embora a autora se mantenha imparcial o tempo todo, quando diz que um slasher pode “através de uma interação com uma poderosa força do bem, mudar seu ponto de vista” descamba. “Poderosa força do bem”? No Mundo das Trevas? Fazer uma pessoa que sente necessidade de matar decidir que não vai mais fazê-lo? E ela conseguir? Não é improvável, é um enredo ruim, um chiclete de nicotina divino. O slasher pode até considerar seus atos errados, mas estamos falando de um desejo, um impulso e um drive tão profundos e intensos que o fazem ignorar todas as implicações físicas, sociais e emocionais do assassinato. Várias e várias e várias vezes. Não adianta dizer que “ah, mas é uma força sobrenatural”, já que em tese ele próprio é “sobrenatural”. Mesmo que esteja próximo de ser capturado, ou acredite nisso, é muito mais provável que simplesmente fuja ou altere seu MO. E nem vamos entrar no mérito da impossibilidade do arrependimento para eventuais personagens psicopatas ou com outras disfunções.
The Becoming, pela mesma autora, não comete erros similares e discute a temida transição de caçador a slasher. A possibilidade de influência sobrenatural, reações de membros de sua célula (quando e se percebem as mudanças), como mestres devem lidar com os jogadores cujos personagens estão nessa situação e o papel da Moralidade. Dá pra jogar com um personagem que possui moralidade 0?
A melhor parte do livro é sem dúvidas o texto Faces of Death, de Mike Lee. Trata do arco de história de um slasher, de seu nascimento a sua destruição. De novo: destruição. Aqui a deslocada possibilidade de redenção nem chega a ser mencionada, embora seja comentada a transmissão do legado. O que existe é um texto muito bem escrito que é obrigatório para qualquer jogador que queira interpretar um slasher. Como o slasher vive, sente, age e reage, quais são os possíveis temas a se explorar, além de vários exemplos de origens e tendências que o personagem poderia ter. Mas se prepare: o tom não é o clássico “slashers são criaturas que se escondem nas trevas e predam pessoas normais. Contra eles a única esperança da humanidade são heróicos caçadores”, mas mais algo na linha de “o slasher – quer seja um genocida, um assassino em série ou um predador sobrenaturalmente dotado – é uma forma inteiramente moderna de monstro. Ele é a morte encarnada: incansável, sem remorsos e implacável. Ele mata suas vítimas por ser compelido a fazê-lo em um nível fundamental. Assassinato Não é uma questão de escolha; é o único modo que o mundo faz sentido para ele. Pela razão que for, suas experiências de vida o levaram a abraçar a morte, seja em busca de vingança, para alimentar seus demônios interiores ou simplesmente para impor sua própria visão distorcida de mundo e do lugar da humanidade nele”.
Matt McFarland põe o dedo na ferida com Twisted e fala sobre uma das questões mais complicadas do novo Mundo das Trevas – que se agrava com Hunter e Slasher: Moralidade. Twisted já vai direto ao ponto ao questionar a jogabilidade de um personagem com Moralidade 0. Ao contrário do que muitos pensam devido ao nome elusivo e o próprio clima da linha predecessora, “Moralidade” não serve para demonstrar o quão “bom”, “mau”, “moral” ou “imoral” seu personagem é. Aliás, é por isso que no início do texto elogiei o fato do livro se manter, salvo ocasionais tropeços, amoral: o próprio sistema tem em seu cerne uma proposta diferente do clássico “herói, vilão e druida”. Moralidade serve para mostrar o que ainda afeta seu personagem. Atos possuem consequências, engendram reações internas, provocam mudanças. Se um personagem matar alguém e se mantiver impávido, há algo de errado. Não por assassinatos serem “do mal”, mas sim por serem eventos extremamente intensos e traumáticos que devem mexer com aqueles que o cometem. Se isso não acontece, o personagem obviamente está em um estado diferente do “padrão”. Conforme ele se distancia do comum, há grandes chances de sofrer alterações de comportamento que não passam de uma forma de adaptação (no Mundo das Trevas, as Perturbações). Matt discute isso e mais, só que tendo em mente indivíduos que precisam matar, que dificilmente ainda se chocam com alguma coisa. Inclua novos Tells, regras alternativas para Vícios, Virtudes, o Código e o conceito de estopins. Ótimo ensaio.
Pra fechar Chuck Wendig escreve um texto bem mais leve que seus companheiros. Favorite Cuts traz “tropos” para inserir em uma crônica ou aventura. Esclarecimento: tropos são clichês. Embora seus devotos prefiram usar o termo para evitar a conotação negativa que “clichê” traz, é a mesma coisa: padrões de enredo recorrentes. Como motivos (que costumam ser elementos como músicas, cores, símbolos, conceitos), só que maiores (personagens e eventos). Qualquer história que você imaginar pode ser esquartejada em diferentes tropos (o que o pessoal da TvTropes possui o maior prazer em fazer) e Chuck apresenta não só os nacos mais tradicionais como também criativas variações. O tom é informal, descompromissado e fará com que você nem perceba o tempo passar.
Slasher, então, traz em uma combinação de estética e conteúdo impecáveis, um dos mais interessantes tipos de criatura que a White Wolf já produziu. Eles são o anti-caçador, anátema a tudo o que se preza e valoriza na sociedade moderna. Não respeitam leis, não pagam impostos, não trocam o carro a cada quatro anos, não bebem e, principalmente, matam. Por puro prazer. Talvez de uma forma ou outro até tentem se adaptar, como Dexter ou Bateman, talvez acreditem sinceramente que há um motivo nobre por trás de seus crimes, mas a grande verdade é que a característica fundamental dos Slashers é a necessidade de assassinar. Eles precisam, eles querem, eles vão.
Resta ao jogador decidir se prefere a luz da vela ou o brilho da faca.
Bom demais…
Deu até vontade de tirar os D10 e meu Hunter da prateleira novamente só para poder jogar com esse suplemente Slasher….
Parabens pela resenha….
Excelente resenha, sou um dos felizes proprietários do livro e ele é realmente um prato cheio para Narradores (apesar das bem arrumadas regras para se ter um Slasher como jogador, não sei se tenho alguém em minha mesa, maduro o bastante para tal)).
Melhor Artigo que você já escreveu, não só esclareceu as limitações e potenciais do livro como fez um paragrafo genial acerca das fontes sobre a pesquisa da Psicopatia, que me surpreendeu entre outros fatores pela Citação do DSM (livro que já li, por estar “próximo” a minha carrera academica e por curiosidade) e bater em cima de psedociências. Além de salientar sofismas geralmete ignorados e propagados.
Parabéns.
isso é um jogo ou um livro e se é um jogo como faz para jogar
Isto é um livro suplemento de regras e de cenário para um RPG, um jogo de interpretação de personagens. Aqui, os jogadores interpretam serial-killers, num Mundo semelhante ao nosso, mas aqui o sobrenatural é real (o Mundo das Trevas). Suponho que você saiba o que é um RPG não?
Olá,
Gostaria de autorização para reproduzir esse texto, com os devidos créditos, no site http://www.mundodastrevas.com.
Obrigado
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