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Komatí Otxukayana (Frank Lemos) – Um Guardião da Memória Ancestral

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No cruzamento entre som, palavra e memória ancestral, Komatí Ariú Mipibú, mais conhecido como Frank Lemos, emerge como uma figura singular no cenário cultural brasileiro. Pianista, pesquisador, poeta e indígena da nação Tarairiú-Otxukayana, ele carrega em suas veias a herança sonora de seu bisavô, o sanfoneiro Manoel Lemos, e a missão de resgatar e revitalizar as raízes de seu povo. Natural de Natal, Rio Grande do Norte, Komatí encontrou em São Paulo, onde vive há cinco anos, um território fértil para semear sua arte e sua luta.

Tarairiú: O Disco que Ecoa Ancestralidade

Seu primeiro grande marco artístico veio em 2019 com o lançamento do disco instrumental Tarairiú, disponível nas plataformas digitais. A obra, que ecoa os afluentes sonoros de sua ancestralidade, não é apenas uma expressão musical, mas um portal que conecta passado e presente, levando-o da capital potiguar à pulsante metrópole paulista. Em São Paulo, Komatí expandiu seu horizonte criativo, mergulhando em projetos que atravessam música, literatura, cinema e educação.

Ye-niewo: Poesia como Resistência

Um dos pilares de sua trajetória é o livro Ye-niewo (Sob Fluência de Espírito), uma coletânea de poemas indígena-ancestrais que transcende o literário para se tornar um instrumento de resistência e revitalização cultural. Publicado de forma independente, o livro é um marco histórico: quiçá o primeiro no Brasil com produção integralmente indígena. Nele, Komatí reúne vozes de diversos povos, com traduções para línguas como Patxohã (Pataxó), Dzubukuá-Kipeá (Karirí), Tupi Antigo e, claro, Otxukayana, a língua de sua nação Tarairiú. As ilustrações, igualmente poderosas, foram criadas por artistas dos povos Potiguara, Kaeté, Guaraní, Xokleng, Xukurú e Tarairiú, consolidando um esforço coletivo que reflete a força da união indígena.

Música, Teatro e Cinema: A Versatilidade de um Artista Completo

A música, porém, nunca deixou de ser um fio condutor em sua jornada. Em 2022, Komatí levou seu piano ao Sarau Ayrumã, na Biblioteca Hans Christian Andersen, e, no ano seguinte, ao Sarau Urukum, no SESC 24 de Maio. Sua versatilidade também o levou ao teatro e ao cinema em 2024, com a composição da trilha sonora do curta-metragem MIRA e do espetáculo Inútil Parto: Um Debate Sobre o Cárcere, apresentado no SENAC São Miguel Paulista, onde também assinou a sonoplastia. Esses trabalhos mostram como sua sensibilidade musical dialoga com narrativas contemporâneas, sempre ancoradas em sua identidade indígena.

Reconstruindo a Língua Otxukayana: Um Legado para o Futuro

Como pesquisador, Komatí é um pioneiro na reconstrução da língua Otxukayana, um esforço que o coloca no centro do Grupo de Trabalho da Década Internacional das Línguas Indígenas, promovida pela UNESCO desde 2023. Essa missão ganhou forma também no campo audiovisual, com o documentário sobre espiritualidade indígena nordestina gravado em Floresta, Pernambuco, durante seu curso de Antropologia Visual na USP, em 2022. Dirigido por ele e com participação do pajé Luíz Pankará, o filme é uma obra inédita que amplifica a presença da língua Otxukayana no registro cultural.

Retomada e Resistência: Vozes Indígenas em Diálogo

Em 2024, sua voz literária ecoou no evento Retomada e Resistência, no SESC Campo Limpo, ao lado de nomes como Pâm Maino’í, Mari Lupp, Day Moreira e Jamille Anahata, que logo esperamos apresentar nessa mesma coluna. No mesmo ano, participou de uma mesa de debate no Cine Bijou, durante a estreia de Memória Possível, de Daniel Solas, discutindo as memórias da Expedição Roncador-Xingu (1943-1948). Esses encontros reforçam sua posição como um articulador de diálogos entre passado e futuro, entre a arte e a luta por visibilidade indígena.

Komatí Otxukayana, Frank Lemos, é mais do que um artista: é um guardião da memória. Sua obra, tecida com as linhas da palavra, do traço e da melodia, ressoa como um chamado à ancestralidade e à resistência, provando que a cultura indígena não apenas sobrevive, mas floresce, vigorosa e transformadora, no coração do Brasil contemporâneo.

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Por
Cadorno Teles -

Cearense de Amontada, um apaixonado pelo conhecimento, licenciado em Ciências Biológicas e em Física, Historiador de formação, idealizador da Biblioteca Canto do Piririguá. Membro do NALAP e do Conselho Editorial da Kawo Kabiyesile, mestre de RPG em vários sistemas, ler e assiste de tudo.

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