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O que faz a música dos Los Hermanos levar multidões aos estádios do Brasil?

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Banda saúda o público após apresentação no maracanã

No último sábado, uma multidão de 42 mil pessoas foi ao Maracanã assistir à apresentação dos Los Hermanos no Rio de Janeiro. A banda de Marcelo Camelo, Bruno Medina, Rodrigo Amarante e Rodrigo Barba realizou o que somente Ivete Sangalo, Roberto Carlos e Sandy e Júnior haviam realizado: conquistar o maracanã sozinhos. O grupo, cujo último álbum foi lançado em 2005, e que está em hiato oficial desde 2007, viaja o Brasil em turnê. Fez shows na Fonte Nova, em Salvador, e no Mané Garrincha, no DF. Cumpriu datas em espaços enormes nas capitais Fortaleza, Recife, Vitória, João Pessoa, Belo Horizonte, e ainda tocará em grandes espaços em Curitiba e Porto Alegre. Depois disso, encara mais um estádio, o Allianz Parque, em São Paulo. Trata-se de feito notável para uma banda de fora do circuito industrial da música, que viveu no Maracanã um “sonho para contar aos netos”, como comentou Camelo ao final do show.

Alheios ao mainstream desde que “Anna Júlia”, do primeiro álbum, de 1999, (produzido por Rick Bonadio) conquistou sucesso avassalador, os Hermanos foram ao mítico estádio carioca encontrar seu público, famoso pela devoção com que entoa o discurso de Amarante e Camelo. Apaixonados, os fãs do grupo não cantam apenas o coro dos sucessos televisivos e radiofônicos da banda. Cantam tudo, o tempo todo. Cantam 25 “hits” numa apresentação de pouco mais de duas horas. E, assim, ficam de mãos dadas com o grupo durante toda travessia, nas estrofes, refrãos e até nos temas instrumentais defendidos pelo inspirado naipe de metais (formado por Pai Bubu no trompete, Mauro Zacharias no trombone e Índio no sax) que acompanha a banda desde sempre.

Comparecer a um show dos Los Hermanos é testemunhar um acontecimento cultural marcante para toda uma geração. É verificar como uma música essencialmente indie e universitária, atravessou o tempo, renovou seu público e manteve-se firme no mercado, movimentando sozinha muito dinheiro, alcançando sucesso nacional e deixando um legado estético. A existência de artistas jovens e férteis como Rubel (a atração de abertura em MG e SP) e Tim Bernardes (a atração de abertura no RJ e PR) mostram como os Los Hermanos marcaram também uma safra de compositores cujos trabalhos têm nítido diálogo com a banda.

O elemento central deste acontecimento é obviamente a música. Em termos de composição, o projeto estético do grupo é o resultado de um rico encontro entre dois compositores, Amarante e Camelo, hoje quarentões. Suas vozes autorais são distintas, porém complementares. Camelo é mais delicado e suave, apesar de atacar com disposição os vocais nos momentos punks de algumas canções. Amarante é mais febril e inquieto, apesar de, por vezes, fabricar baladas embriagadas de melancolia. Ao longo da carreira, cada um foi desenvolvendo um estilo próprio, que se somou ao do outro e deu vida à exitosa alquimia da música dos Hermanos. Um sabe ser o coadjuvante do outro quando o momento exige. Além disso, Amarante e Camelo são a vitrine do grupo nas performances ao vivo. São eles que ocupam a frente do palco e falam com o público.

Da reunião entre estas duas sensibilidades e da intervenção dos teclados de Bruno Medina, nasceu uma sonoridade harmônica e melódica única no cenário da música popular contemporânea do Brasil. Com ecos líricos e existenciais de Belchior e Chico Buarque, sugestões orquestrais de Weezer e Squirrel Nut Zipper, e alguma identificação remota com a cena alternativa do final dos anos 1990 do Rio de Janeiro, em que figuravam nomes como Acabou La Tequila, Carne de Segunda e Mulheres Que Dizem Sim. Assim, na música dos Hermanos há bolero, samba, salsa e hardcore. Canções aceleradas como “A flor” e “Pierrot” animaram no sábado a mesma plateia que cantara “Ana Julia” sem constrangimento ou se emocionara com a frágil “De onde vem a calma”.

Em todos os casos, contudo, sob as frases e temas dos instrumentos harmônicos e melódicos, está fincado o marcante sotaque rock da bateria de Rodrigo Barba. É ele, com sua mão pesada de quem toca samba sem ser exatamente um “baterista de samba”, que conduz o cordão para que o bloco dos Los Hermanos consiga desenvolver sua autoria. O disco “Bloco do Eu Sozinho”, de 2001, é um exemplo perfeito desta conversa musical, em que o universo imagético e sonoro do carnaval, o vigor do rock e um clima de fanfarra circense atualizam-se no século XXI.

“O amor já desvendou nosso lugar”

Embalada por este material sonoro, está uma poesia sensível e lapidada, que parece ser um dos maiores trunfos da comunicação proposta pela banda. Amarante e Camelo sabem esculpir letras em fina sintonia com os afetos de seu público. Sua escrita emotiva consegue amarrar uma relação estreita entre a canção e a gramática dos sentimentos, fazendo com que suas músicas possam ser cantadas de peito aberto com altivez e honestidade. A partir de suas inteligências artísticas, os compositores habilidosamente transformam emoções em estado bruto em timbres e signos carregados de expressividade. Isso significa que, no final das contas, o que os Los Hermanos fazem é se arriscar a falar de amor.

Na música popular, o amor é um assunto banalizado, que tem a cafonice sempre à espreita. Cantar o amor com verdade e desembaraço é raro e arriscado. Nesse sentido, os Hermanos se aventuram e se oferecem ao risco, como haviam prometido fazer ao batizar, em 2001, seu terceiro disco de “Ventura”. Assim, encaram a árdua tarefa de tratar de tema tão desgastado e, ao mesmo tempo, grandioso. Daí vêm a implicância de que são, por vezes, objeto. Mas daí também vem a intensidade das canções que se conectam com uma audiência disposta a corajosamente se expor e declamar aquelas palavras com volume alto e energia. Sem melodrama, a banda afasta-se discretamente dos clichês das lovesongs e ajuda seus fãs a desentalarem frases de amor da garganta. Especialmente dos homens, que, de certa forma, protagonizam os corais que emergem do público, cantando em uníssono sobre desencontros e alegrias.

Muitos casais se conheceram em shows da banda e não faltam relatos de histórias de amor embaladas pela música do grupo. No sábado, “Conversa de Botas batidas”, uma belíssima canção sobre um casal que aposta no amor até o fim derradeiro, proporcionou um momento coletivo de exaltação e intimidade. Em “Sentimental”, o Maracanã reverberou a calma da melodia angustiada de Amarante. Os celulares, que normalmente atrapalham, compuseram um vistoso quadro em que brilhava uma comunidade estrelada. No descampado da noite, numa arena aberta, o céu cobria o som que saía do palco e chegava nítido nos ouvidos e corações da plateia.

Como forma de amor, a amizade é também um dos elementos que constituem o fenômeno Los Hermanos. Desde os rituais de composição dos discos, em que os quatro membros da banda se isolavam em sítios da serra do RJ para compartilhar o tempo e criar, até o “irmãos” estampado no nome do grupo. Originalmente, a banda se constituiu a partir da amizade de Camelo com Barba, Medina e Amarante, e não exatamente por conta de afinidades musicais. Com backgrounds artísticos distintos, os Hermanos são resultado da soma de suas individualidades reunidas pela amizade e na diferença. Depois de lançarem o quarto e último disco, “4”, em 2005, os Hermanos preferiram suspender os trabalhos por tempo indeterminado, para não deixar os percalços da carreira acabarem com o prazer que camaradas de décadas têm de se encontrar para tocar.

No último sábado, no único problema técnico da noite, quando o som da guitarra de Camelo desapareceu, Rodrigo assumiu o microfone entre uma música e outra e, fraternamente, agradeceu a Marcelo por ter lhe convidado para fazer parte de sua banda, quando ainda eram jovens de 20 e poucos anos na PUC do Rio. Foi por conta do companheirismo gerado por aquele afortunado convite que eles agora estavam ali, lado a lado. Tocando para uma multidão que, de alguma forma, se identifica com a aura de afeição que ainda transborda do encontro entre os dois.

Até o final do mês, aproximadamente 200 mil pessoas terão compartilhado desta irmandade musical e afetiva, nos 11 shows da turnê de 2019. Na apresentação do Rio, ao encerrarem seu ritual de elogio à música, os Hermanos pareciam felizes por tocar em sua cidade natal. Perante pelo menos duas gerações distintas de fãs, agradeceram à multidão e às mais de 200 pessoas da produção que fizeram tudo aquilo acontecer. Num espetáculo equilibrado, com um cenário sóbrio, sem surpresas ou ousadias, o público viu o grupo numa performance competente.

Um show como este, em que uma banda indie praticamente inativa, com uma carreira de curtos oito anos (de 1999 a 2007) enche o Maracanã, é representativo de tudo que a música pode ser como comunicação, arte e afeto. Depois de florescerem pelas mãos da indústria e serem gravados até por George Harrison, os Hermanos romperam com o modelo então vigente de gerenciamento de carreira e apostaram na força original de seu enunciado artístico. Criaram uma música sentimental, moderna, urbana e brasileira. Assim, seguem sendo um dos episódios mais singulares da música nacional dos últimos tempos, independente de se gostar ou não do seu trabalho. O que os Los Hermanos são capazes de promover em torno de si só reafirma a potência mágica que a música tem, de gerar, com suas imagens e sensações, extraordinários e duradouros laços de afeto sincero entre um artista, suas canções e seus fãs.

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Por
Gabriel Gutierrez -

Pesquisador e jornalista interessado na música pop produzida nas Américas.

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