AcervoCríticasLiteratura

A poética de Divanize Carboniere, o som da terra e seus ritmos

Compartilhe
Compartilhe

Divanize Carbonieri é uma das artistas que foi precocemente expelida de Sorocaba sem que a cidade a conhecesse. Não se trata de privilégio. Foi juntar passos rumo ao Mato Grosso enquanto outros buscaram abrigo na Paraíba, Rio Grande do Sul, Minas Gerais, Rio de Janeiro. Tenho, que sua Sorocaba natal, é boa de espalhar gente pelo Brasil, incapaz que é de absorver o talento da sua terra, sempre tomado por um aperto, um nó na garganta que talvez explique o sentimento da cidade, aquele sufocar de alma que só quem tem poeira no sangue consegue entender.
Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, professora de Literaturas de Língua Inglesa na Universidade Federal do Mato Grosso, escreveu dois livros de poemas: Entraves (Carlini & Caniato Editorial/2017) e Grande Depósito de Bugigangas (Carlini & Caniato Editorial/2018). Fiz a leitura na sequencia em que os volumes foram publicados. Notei em Entraves uma busca de identidade, não incomum em primeiras publicações, ainda que a autora tenha sólida formação acadêmica. O prosaico de alguns escritos se confunde com o refinamento de metáforas, figuras de linguagem e sólidas imagens nascentes do vertedouro caipira da sua criação. Ainda que reine a condição fluídica da poesia, a objetividade é presente e norteia a construção dos versos.

Divanize Carbonieri (arquivo pessoal)


Não desassocio autor de criatura. Nascida em Sorocaba, interior do Estado de São Paulo, a escritora traz em sua poesia algo que me impressionou: é rítmica. Lida em voz alta – assim devem ser percebidas as boas poesias – a estrutura dos seus textos remetem a um caminhar seguro, pontuado pelo barulho dos pés em solo seco, fazendo o avançar rasgante ser pasto desbravado para quem queira seguir atrás.
Picada aberta, o rumo é sútil e tem o cheiro que a imagem poética é capaz de gerar:
“piso em pedacinhos roxos
flores em forma de sinos
destroços menores
dos meus desatinos”
(rumo / Entraves)
Ou em:
“o pano se tinge da nuance bege
da pele da moça macilenta e sonsa
pequeno pontinho na trama do linho
a teia se pinta pronto de magenta”
(lacuna / Entraves)
Fiz questão de ressaltar a origem da poeta pois sua escrita denuncia seu nascedouro e certas influências. Ainda que distante boa viagem da terra natal, sua poesia grita o sotaque sorocabano, embrenhado de uma mistura de sons como em lugar algum do Brasil. A elevação em algumas sílabas ora encadeadas apontam a influência espanhola sobre o falar dos habitantes da cidade, o chiado em certos jogos de palavras revelam os árabes que domaram o comércio local, ainda restando espaço para o tradicional caipira paulista e outros povos que ocuparam os limites do município desde a época da sua fundação, quase indo aos quatro séculos (paira severa divergência sobre a idade real da cidade).
Entraves, como livro de estreia, já seria motivo de orgulho para sua autora. Apesar de pequenas nuances, coletânea artística de extrema qualidade. Quanto ao outro volume, Grande Depósito de Bugigangas, o li de fôlego, num respirar contido para não perder palavras e expressões no abrir boca. O que já era muito bom – a poética de Carbonieri – torna-se providencial e atinge o sublime com estrutura coesa e linear. É um dos livros de melhor trabalho editorial do ano e em cujo conteúdo repousa um dos melhores feitos poéticos da atualidade.
Grande Depósito de Bugigangas é um remexer de memórias e sensações, sem o peso – ou pedantismo – de um livro de lembranças e angústias familiares: trata-se de série de impressões na alma que tomam destino próprio, ganham corpo e correm livres. Até mesmo para retratar o calor característico da Cuiabá que a adotou – cidade fundada por bandeirantes sorocabanos – a autora demonstra em ritmo o trotar dos velhos bandeirantes paulistas e os sons do seu falar cantado.
“nessa febre cuiabana
uma ardência
de ar incendiado
uma cratera de vulcão
atmosfera abrasada
faíscas convulsionadas
convolutas estrelas”
(ogiva / Grande Depósito de Bugigangas)
Divanize Carbonieri é das nossas grandes poetas. Deve ser lida e compreendida como tal. Entraves e Grande Depósito de Bugigangas podem ser adquiridos na loja virtual da escritora ou no site da Carlini & Caniato Editorial.

Compartilhe

1 Comentários

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Sugeridos

A beleza atemporal de Dersu Uzala (1975) em contraste com o Cinema Atual

Em um momento de escassez de grandes estreias nos cinemas, surge uma...

Trechos do livro “Assassinato no Monte Roraima”

Edgard Zanette nasceu em Medianeira, PR, e cresceu em Foz do Iguaçu....

Chabadabadá: focos diversos numa série irregular

Uma confissão: sou avessa a maratonar séries. Talvez por ser uma millennial...

Juliana Polippo lança “Te Procurei, Mulher” na Flip 2024

Tratando de temas íntimos, como reconhecimento das próprias inseguranças, a obra também...

Ricardo Kaate  fala sobre “A Lança de Anhangá”, livro que mistura mitologia amazônica com sci-fi

Publicada pela editora Cachalote, livro de contos especulativos foi vencedor do Prêmio...

Eric Clapton ministra uma bela aula de blues rock no Rio

Eric Clapton está de volta ao Brasil com sua nova turnê. Foram...

Taslim lança livro afrofuturista em evento no Rio de Janeiro

Com prefácio da escritora Lu Ain-Zaila, “A Dáie de Vários Nomes” conta...