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O Simpatizante: uma minissérie eletrizante

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Toda guerra é travada duas vezes: uma no campo de batalha e outra na memória. Tomemos como exemplo a Primeira Guerra Mundial: se o alistamento era motivo de excitação e desfiles para os incautos jovens que estavam prestes a embarcar para a Europa e lutar “pela liberdade”, quando o conflito acabou deixou uma multidão de ex-combatentes traumatizados, quando não desfigurados, e assim deu origem à chamada Geração Perdida. Hoje não falaremos sobre a Primeira Guerra Mundial – infelizmente, porque é um dos meus assuntos favoritos – mas sim da Guerra do Vietnã.

No Vietnã do Sul, capitalista e apoiado pelos Estados Unidos, espiões capturados são interrogados em salas de cinema, como atração preliminar antes da atração principal que é um filme – de Hollywood, naturalmente. Ao lado de Claude (Robert Downey Jr), o Capitão (Hoa Xuande) assiste a um destes interrogatórios com lágrimas nos olhos. Ele tem essas lágrimas nos olhos porque a culpa de a mulher estar sendo interrogada é dele: ele teve de prender uma camarada para manter as aparências. O Capitão é um agente infiltrado do Vietnã do Norte, socialista e apoiado pela União Soviética.

Durante o Cerco de Saigon, o Capitão foge do país junto ao General (Toan Lee), e levando a tiracolo seu amigo sul-vietnamita Bon (Fred Nguyen Khan), que nada sabe sobre ele ser um infiltrado. Já nos Estados Unidos, o Capitão passa a ser protegido pelo professor Hammer (Robert Downey Jr), com cuja secretária, Sofia Mori (Sandra Oh), o Capitão se envolve. O caminho do Capitão também se cruza com o do deputado e ex-combatente no Vietnã Ned Godwin (também Robert Downey Jr) e do cineasta Nicos Damianos (adivinha? Robert Downey Jr).

Você percebeu que o nome de Robert Downey Jr aparece várias vezes, certo? Volte no texto e conte as vezes e você terá um dado: o astro recém-oscarizado interpreta quatro papéis. Ele faz de Claude camaleônico e o professor Hammer bastante afeminado, beirando o caricato, para compor um homem ocidental que quer ensinar aos orientais o que é ser oriental – portanto, um homem ridículo. A escolha de um único ator para interpretar todos os personagens brancos pode ser identificada como uma situação em que “o jogo virou”: quantos ocidentais não disseram, de maneira até preconceituosa, que todos os orientais são iguais? Então, para os orientais, os ocidentais também podem ser todos iguais.

Numa conversa com Nicos Damianos sobre um filme que vem sendo planejado sobre o Vietnã, o Capitão, empregado como consultor, questiona se não seria interessante dar mais falas aos atores vietnamitas, para que externem sua experiência tomada em primeira mão. Damianos contesta: “não quero ouvi-los falando de seu sofrimento, eu quero sentir!”. O diretor garante que está fazendo uma escolha criativa, de acordo com os fundamentos do cinema como arte. Para além da piada sobre o Método feita alguns minutos depois, a subtrama do filme trata de um assunto na ordem do dia: representatividade.

Há uma conversa interessante entre o Capitão e seu velho amigo Sonny (Alan Trong) quando ambos estão no apartamento da senhorita Sofia Mori. O Capitão acusa Sonny de covardia, por ser um “ativista de sofá” e preferir proferir discursos na faculdade a voltar para sua terra natal e lutar por sua libertação. Por outro lado, o General planeja uma luta contra os comunistas, mas isso não significa que ele está do lado dos Estados Unidos: ele inclusive diz que a América engole tudo que você tem e todos que você ama.

É mencionado muitas vezes que o Capitão é mestiço: filho de um francês e uma vietnamita. O Vietnã, junto a outros países como Laos e Camboja, era chamado então de Indochina, e foi colônia francesa até 1950.

Esta é mais uma série da produtora A24. A minissérie foi criada por Park Chan-wook, diretor do cult “Oldboy” (2003) em parceria com Don McKellar, ator, diretor e roteirista canadense ganhador de vários prêmios e responsável pela adaptação de “Ensaio sobre a Cegueira” para o cinema em 2008. Eles tiveram como base o livro “The Sympathizer”, que ganhou um Prêmio Pulitzer e inclusive entrou na muito comentada lista de 100 melhores livros do século XXI eleitos pelo The New York Times. O autor Viet Thanh Nguyen é produtor executivo da minissérie.

O espetacular episódio do filme em que o Capitão serve como consultor foi dirigido pelo brasileiro Fernando Meirelles. Park Chan-wook escolheu dirigir apenas os três primeiros episódios para criar a atmosfera da minissérie e então passar o bastão para outros diretores, que teriam assim uma liberdade criativa algo limitada, mas que Meirelles soube usar com perfeição.

A frase de efeito dita num dos episódios é um soco no estômago: “a vida é uma missão suicida”.A minissérie vai causar fortes emoções em quem a assistir – inclusive um inesperado orgulho de ser brasileiro. Esse provavelmente era o resultado almejado pelas mentes por trás de mais um sucesso da HBO, “O Simpatizante”.

O Simpatizante

O Simpatizante
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Nota: 6/10 Bom
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