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Organicidade e fluidez no espetáculo “Círculo da Transformação em Espelho”

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Círculo da Transformação em Espelho (no original Circle Mirror Transformation), primeira montagem no Brasil de texto da dramaturga americana Annie Baker, com idealização e tradução de Rafael Teixeira e excelente direção de Cesar Augusto, é uma joia. Esteve em cartaz no SESC Copacabana até 29 de outubro e torcemos para que ganhe nova temporada.

Na peça, cinco pessoas comuns reúnem-se para um curso de teatro sem grandes pretensões, na fictícia cidade de Shirley, no estado de Vermont: a professora, seu marido, um carpinteiro separado que ainda carrega aliança no dedo, uma atriz que se mudou há pouco para a cidade e uma adolescente cheia de expectativas sobre o que é ser atriz e sobre como deve ser um curso de teatro. O espetáculo gira em torno dessas aulas e dos exercícios propostos por Marty, a professora, e das mudanças que vão acontecendo ao longo do curso

Cabe destacar aqui também a excelente direção de movimento de Dani Cavanellas, uma vez que o espetáculo é focado nos exercícios de teatro e interpretação variados que exigem dos atores uma constante movimentação pelo palco. A metalinguagem do texto de Annie Baker é outra pequena maravilha da peça. O cenário, de Mina Quental, traz espelhos que remetem a uma sala de aulas de teatro e dança, e são movimentados pelos atores no desenrolar do drama.

O espetáculo parece fácil, dado que tudo flui muito bem e há organicidade na dramaturgia e nas interações entre os personagens, o que evidencia a habilidade da autora e a capacidade da equipe de transpor para o palco o que é por ela proposto. A forma como as aproximações e distanciamentos vão acontecendo entre os personagens e como as personalidades vão se revelando/construindo no coletivo é o grande acerto do texto. As histórias pregressas de cada um dos participantes do curso de teatro vão aos poucos sendo ressignificadas através de exercícios que trazem a delicadeza de saber (e aprender) a justa medida do contato, da invasão (emocional e física), do respeito ao outro e do respeito a si mesmo.

Os personagens são extremamente vivos e realistas, e é nesse sentido que o espetáculo ‘parece fácil’ – como uma dançarina que faz milagres com o corpo como se o corpo já soubesse os caminhos dos movimentos de dança antes de qualquer ensaio exaustivo – o que mostra que Annie Baker consegue capturar e transformar com maestria as dinâmicas muitas vezes sutis daquilo que se dá entre as relações: e é exatamente esse ‘entre’ o que importa, é esse ‘entre’ que dirá quem eu sou agora e quem você é agora, e o que passaremos a ser a partir daqui. São as intensidades, as impressões sensíveis, os silêncios, os não-ditos, as entonações do que enfim pode ser dito e que acontecem ‘entre’. Em suma: tudo aquilo que não se mede com instrumentos objetivos, mas que determina o curso das relações.

No entanto, essa organicidade do espetáculo não seria possível sem uma direção primorosa e a dedicação dos atores, que, sendo atores, têm o desafio de representar não-atores tentando ser atores (à exceção da personagem Teresa). Aqui o ator tem de se encontrar consigo mesmo, com seu próprio aprendizado e com suas dificuldades de ser e de se tornar um ator. Tem de se encontrar, em suma, com seu próprio percurso como ator, sempre em processo. Há o risco grande da construção de personagens estereotipados, mas, felizmente, isso não acontece.

É possível, além disso, chorar de rir mesmo não se tratando de uma peça de comédia. Todavia, os personagens são tão ricos e Alexandre Dantas, Carol Garcia, Fabianna de Mello e Souza, Júlia Marini e Sávio Moll conseguem veicular tão bem essa riqueza e a capacidade de transformação de si dos personagens de Círculo…, que a peça se torna de fato um espelho de todos nós.

Há vários momentos excelentes e poderia ser citado, à guisa de ilustração, o exercício coletivo de improvisação de sons e movimentos, em que uma das pessoas do grupo deve fazer um som que se repete e os demais imitam, até que outra pessoa adapte ou transforme aquele som e todos o seguem, e assim sucessivamente, enquanto rodam em círculo. É quase uma metáfora da peça inteira, dos ajustes mútuos e das mudanças que cada um e o coletivo sofrem e vivem a partir de cada ato individual que, por sua vez, só pode nascer a partir de um coletivo e de um contexto prévio. Em uma palavra: fantástico.

De fato, é possível dizer que, quando rimos muito de algo, é porque, em certa medida, nos vemos no que nos provoca o riso desmesurado. É porque, de fato, conseguimos nos colocar de fora de uma situação que, vista desse outro viés, a partir de inédita perspectiva e tomando certa distância, permite que possamos nos enxergar no outro e rir de nossas próprias confusões diárias. É como propõe o professor do eterno “Sociedade dos Poetas Mortos” ao convidar seus alunos a subir na mesa da sala de aula e experimentar uma nova visão do mundo: da plateia do teatro, escondidos pela luz apagada, apenas observando, conseguimos nos ver em cada um dos personagens de Círculo da Transformação em Espelho, podemos observar suas reações a partir de um lugar protegido, e ver que somos todos eles, em maior ou menor medida.

FICHA TÉCNICA

Texto: Annie Baker

Idealização e tradução: Rafael Teixeira

Direção: Cesar Augusto

Elenco / Personagem:

Alexandre Dantas / James

Carol Garcia / Lauren

Fabianna de Mello e Souza / Marty

Júlia Marini / Theresa

Sávio Moll / Schultz

Direção de movimento: Dani Cavanellas

Assistente de direção: Pedro Uchoa

Cenário: Mina Quental

Iluminação: Adriana Ortiz

Figurinos: Ticiana Passos

Programação visual: Daniel de Jesus

Fotos: Rodrigo Castro

Vídeos: tocavideos – Fernando Neumayer e Luís Martino

Direção de produção: Luísa Barros

Produção executiva: Ana Studart

Administração financeira: Amanda Cezarina

Assessoria de imprensa: JSPontes Comunicação – João Pontes e Stella Stephany

Realização: Sesc Rio

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