Outros, novo espetáculo do mineiro Grupo Galpão, é mais uma vez genial. Com direção de Márcio Abreu e dramaturgia de Eduardo Moreira, Paulo André e também Márcio Abreu, tem início de modo contagiante, com músicas com temática, entre outras, sobre a finitude (o abismo, por exemplo) e as mulheres. Nós, a plateia, já entramos, animados em busca dos lugares (alguns entram de fato dançando) com o som que se faz sobre um retângulo ao fundo, espécie de púlpito, em cima do palco, onde estão alinhados 9 membros do elenco, tocando e cantando diversas canções, em cena que inicialmente parece um show de pop rock e que vai permanecer assim durante a peça inteira.
O elenco, ensaiadíssimo, é composto por Antonio Edson, Arildo de Barros, Beto Franco, Chico Pelúcio, Eduardo Moreira, Fernanda Vianna, Inês Peixoto, Júlio Maciel, Lydia del Picchia, Paulo André, Simone Ordones e Teuda Bara.
A iluminação, tanto aqui quanto no resto da peça, assinada por Nadja Naira, é qualquer coisa de fundamental, ajudando a desenhar a pulsação do instante e as intermitências (ou continuidades que gostamos de segmentar) do tempo, assunto que é a espinha dorsal do belíssimo espetáculo.
Outros é tão bem montado e tão rico que suscita muita leituras. Ou permite que eu, na liberdade que tenho de escrever sem ser uma pessoa do teatro nem mesmo jornalista, use da criatividade que o Grupo Galpão tem de sobra e que inspira em mim para fazer algumas leituras. Em primeiro lugar, já enxergo, e não é de hoje – mas a peça em questão corrobora um pouco essa impressão – já enxergo (eu dizia) uma obra. Galpão, em seu trabalho autoral, já tem uma obra, no sentido de uma identidade e de relações entre as peças, tem um conjunto de trabalhos que compõem de fato o que chamamos obra em seu sentido plural. A obra do Grupo Galpão abarca inúmeras peças, entre elas a desta temporada de 2018 que, sorte a nossa, chegou ao Rio de Janeiro no Teatro Sesc Ginástico, no Centro da Cidade. Além disso, dialoga com espetáculos anteriores: Outros me lembrou Nós e me lembrou De Tempo Somos.
Outros é um espetáculo que fala sobre o tempo, sobre a dor e sua relação com a passagem do tempo (ou se indaga se a dor tem a ver com isso, afinal, um neném, ao nascer, eles se perguntam, sente dor?, e sendo positiva a resposta, tem a ver, tal dor, com o tempo?, e talvez eu até dissesse que sim, tem a ver com 9 meses, com 40 semanas, com o tempo necessário – mais ou menos dilatado – que convoca para a responsabilidade da existência fora do útero).
Outros é um espetáculo que fala ainda sobre o que não sabemos (e não sabemos o tempo, ou o sabemos quando não pensamos sobre ele ou quando não somos chamados a falar sobre ele, parafraseando a questão clássica de Santo Agostinho), sobre o susto que o tempo, que corre, dá, trazendo notícias de acontecimentos sobre os quais não temos o menor controle e cujo conhecimento também nos escapa, a ponto de ficarmos transtornados com nossa falta de saber, de memória, de compreensão, de controle. Quando nos espantamos porque nem sabíamos de algo – e isso aparece no espetáculo de forma sublime, porque são sublimes os diálogos dos espetáculos do Grupo Galpão, e isso tampouco é de hoje – quando nos espantamos, enfim, o espanto diz respeito à perplexidade face à evidente falta de controle e às surpresas trazidas pelo tempo, que, dizem, é relativo.
Mas o melhor de tudo é a maneira como o espetáculo conduz esses diálogos e as famosas repetições, que mostram versões diferentes das mesmas histórias, que repetem perguntas, que evidenciam como uma versão de um mesmo fato pode assumir um formato tão diferente de outra. Há um momento sensacional em que eles parecem uma música, um vinil que um DJ mexe como quer, eles são marionetes do tempo e do ritmo, eles estão recontando histórias e textos que já foram ditos, mas o fazem como se fossem samples de DJs ultracontemporâneos, então textos e movimentos ganham novo colorido, nova velocidade, ganham cara de disco arranhado. Esse é um dos momentos brilhantes.
Há também o momento do aniversário, do parabéns, do bolo de morango com chantilly (sincronicidade com a minha comemoração de aniversário fora de época, na véspera em que vi o espetáculo, e que tinha um bolo de morango com chantilly e vela com cara de foguetório), cena que se repete e que tem um parabéns cujo fim atravessa e atropela o começo, causando uma sensação de estranheza, como acontece em várias outra cenas igualmente geniais. De fato, a dramaturgia e a direção são impecáveis e tiraram ideias sabe-se lá de que caixa de joias espertas para transformar em dramaturgia e imagem e corpo e voz e coletivo tudo aquilo sobre o que se vinha falando do início ao fim de Outros.
Mais um momento brilhante é o do treino da valsa e depois o da valsa em si. Aqui o tempo é trabalhado a partir da dança e da música, o tempo ternário da valsa. São momentos hilários, talvez dos mais engraçados, que, quando se concretizam na valsa, fazem chorar de rir, porque, de fato, por mais que treinemos, algo nos escapa, algo é mais forte, o colapso do formato evidencia o colapso de um “eu” mandatário, porque o eu só existe a partir de outro e de outros, e mesmo que você queira dançar no compasso e na coreografia desejada, pode haver um outro (ou muitos outros) que vai tropeçar, cambalear, errar o passo, errar o ritmo, sair do controle, desafiar, te agarrar e te beijar loucamente. É de chorar de rir.
O momento em que o cenário entorta e que a música parece mais desafinada, evocando, talvez, a decadência que o tempo promove e já se encaminhando para o final da peça, é também muito bom, dando a impressão de que tudo vai cair, de que a idade é mesmo uma coisa complicada, como mais ou menos é falado ao final. Evidencia-se, assim, que a queda é inevitável e, de fato, as pessoas morrem. Aretha morreu. Dona Ivone Lara também. As referências que Outros traz enriquecem o hipertexto que vai dando provas de que sim, o tempo passa para todos, nós e os outros.
Ao final da peça, no entanto, algo poderia ser mais curto. As cenas finais poderiam ser um pouco menores, mesmo com a beleza imagética que algumas delas carregam. Refiro-me aos 4 momentos em que os atores estão sozinhos no centro da cena (três deles) e a quarta cena com todos pulsando juntos, paisagem humana embolada e vibrante, antes do momento que finaliza a peça. Das cinco cenas finais, quatro delas poderiam ser bem mais curtas, sobretudo após tanta dinâmica, e aí o espetáculo ficaria irretocável.
Fotos: Guto Muniz
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