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Relendo ‘Stardust’ de Neil Gaiman

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“Ela não diz nada, simplesmente olha para cima para o céu escuro, e observa, com os olhos tristes, a dança lenta das infinitas estrelas.”

Se existe uma forma melhor de lançar um jovem à leitura, que tal apresentar uma aventura fantástica de um personagem da mesma idade, que irá trilhar a busca de uma estrela caída para conquistar seu amor.

Neil Gaiman usando os mesmos ingredientes que estão mergulhados na literatura de fantasia, da mesma forma que Charles Perrault fez ao escrever suas fábulas, há mais de 300 anos. Apresenta assim o seu Stardust – O Mistério da Estrela, uma narrativa que faz livremente, apoiado nas pedras mais gastas dos contos de fadas, mas com o frescor de quem cozinha sem ter de seguir o livro de receitas.

O desenvolvimento da história

Gaiman comemorava a conquista de um prêmio literário no final dos anos 1990, quando viu uma estrela cadente cruzar o céu e a história de Stardust (Rocco, 2010) se formou em sua cabeça.

A princípio o idealizou como um livro ilustrado, então convidou Charles Vess, parceiro em várias edições de The Sandman, e propôs um conto de fadas, em várias capítulos, sobre um menino que mora em uma aldeia britânica que faz fronteira com um país das fadas.

Seus habitantes guardam um portão com a única entrada para o reino faérico, dia e noite, e apenas uma vez a cada nove anos é permitida a troca entre o mundo das fadas e o dos humanos.

A cidade, que foi chamada de Muro, não era nova para Gaiman. Um ano antes de sua repentina revelação criativa, o autor já havia escrito um prólogo para um romance ambientado nela.

Assim, Stardust tornou-se a prequela de um livro não escrito e o cartão de visitas de um universo de fantasia vitoriana para o qual outros autores já começaram a seguir.

A história

Stardust nos leva ao coração da Inglaterra vitoriana, aos anos de Oliver Twist. Lá nasce Tristran Thorn, da união de uma feérica com um camponês inquieto. Aos 17 anos, Tristan é um típico adolescente, magro, de cabelos desgrenhados, com acne e uma cabeça cheia de planos.

Como  muitos jovens de sua idade, está apaixonado por uma das garotas de sua cidade, que, farta da sua insistência, concorda em realizar seus desejos em troca de uma estrela cadente caída do céu.

A estrela exigida pousa do outro lado do muro, e Tristran, determinado a conquistar o coração de sua amada, atravessa o portão e entra na terra das fadas. E é aí que Gaiman pega a estrela e a transforma em uma donzela bonita, que ferida amaldiçoa sua sorte por ter chegado naquele mundo sujo e caótico, tão diferente do céu em que sempre viveu.

Análise

Para muitos, em especial quem assistiu o filme de 2007, dirigido por Matthew Vaughn, podem achar a narrativa um tanto sem ritmo. Na versão cinematográfica, Tristran vive uma aventura no estilo de “A Princesa Prometida” de William Goldman, enquanto no livro Gaiman recria os contos clássicos, homenageando Perrault, GK Chesterton, os Irmãos Grimm e mesmo JRR Tolkien.

O filme tem 2 horas de boa diversão, pipoca e um final feliz. Entretanto, o livro é mais do que uma história infantil: como quase todas as obras de Gaiman, Stardust admite uma leitura profunda, em busca de desafios e referências. O filme nos dá um olhar tênue, mas Stardust é quase como ir para um mundo encantado, o muro separa o “mundo real” do “mundo da fantasia”.

Com prosa deslumbrante, Gaiman descreve as paisagens ilusórias, os cheiros, os sustos, a diversão e o perigo do mundo das fadas.

E enquanto o protagonista conhece a magia, cavalga um unicórnio, navega pelo céu com caçadores de relâmpagos, luta contra bruxas e tenta trazer sua estrela de volta ao Muro, ele amadure. Ninguém percebe isso, nem aqueles que convivem com ele na história, nem o leitor, nem ele mesmo, mas quando Tristran se aproxima do fim de sua aventura, já deixou de ser menino, se tornou um homem. Enfrentou perigos e problemas, desfrutou do amor, sofreu por ele, viveu de perto a morte, entre outros aspectos que deixam o olhar do jovem mais longe da visão dualista da juventude.

É assim que Gaiman tenta definir a sua visão dos contos de fada, fantasia, quadrinhos, literatura … Stardust é um apelo a uma literatura sem limites de idade, transversal e sem restrições de género; é uma história brilhante, apreciada ao ler em voz alta para uma criança ou ao envolvê-la com cuidado e paciência. É tudo o que Chesterton pensava das fábulas quando escreveu que “os contos de fadas são verdadeiros, mas não porque nos dizem que os dragões existem, mas porque nos dizem que podemos derrotá-los”.

Grato, Neil Gaiman, por nos presentear com uma narrativa que nos faz lembrar de nossas vivências de nossa juventude. Stardust – O Mistério da Estrela é uma leitura absolutamente obrigatória.

Nota: Fantástico (4,5 de 5 estrelas)

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Por
Cadorno Teles -

Cearense de Amontada, um apaixonado pelo conhecimento, licenciado em Ciências Biológicas e em Física, Historiador de formação, idealizador da Biblioteca Canto do Piririguá. Membro do NALAP e do Conselho Editorial da Kawo Kabiyesile, mestre de RPG em vários sistemas, ler e assiste de tudo.

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