Exposição de Giselle Beiguelman no Museu Judaico combina jardins e Inteligência Artificial para discutir preconceito e colonialismo

De 28 de maio a 18 de setembro, o Museu Judaico de São Paulo apresenta sua primeira grande exposição de 2022. Em Botannica Tirannica, mostra inédita concebida especialmente para o Museu, a artista e pesquisadora Giselle Beiguelman investiga a genealogia e a estética do preconceito embutidos em nomes populares e científicos dados a plantas como Judeu errante, Orelha-de-judeu, Maria-sem-vergonha, Bunda-de-mulata, Peito-de-moça, Malícia-de-mulher, Catinga-de-mulata, Ciganinha, Chá-de-bugre, entre muitos outros.

A mesma lógica se observa em nomes científicos, entre os quais são comuns palavras como virginica, virginicum e virgianiana para designar flores brancas; e Kaffir, uma palavra que é altamente ofensiva aos negros e considerada na África subsaariana um equivalente da palavra “nigger” que se convencionou chamar N-word, pelo grau de violência social que carrega.

Um dos ícones da exposição é a a planta popular Judeu errante (Tradescantia zebrina), título de uma narrativa medieval que foi um dos baluartes da propaganda nazista e que tem o mesmo nome em várias línguas, como alemão, francês e inglês, sendo uma das muitas expressões depreciativas usadas contra os judeus.

Reunindo imagens e vídeos produzidos com IA, e um ensaio audiovisual, a artista Giselle Beiguelman propõe uma investigação estética e conceitual a respeito do imaginário colonialista presente no processo de nomeação da natureza, cujas espécies, caso das plantas ditas “daninhas”, recebem nomes ofensivos, preconceituosos e misóginos.

Em conjunto com seu Jardim da resiliência, que ocupa as áreas externa e interna do Museu e onde são cultivadas espécies dotadas de nomes ofensivos e preconceituosos, na série Flora mutandis a artista cria com a Inteligência Artificial seres híbridos, plantas reais e inventadas, em um jardim pós-natural.

“O patriarcalismo está entranhado no discurso científico. Na divisão binária das plantas criada por Lineu, há as ‘masculinas’, que têm órgão reprodutor masculino androeceu (do grego andros, homem), e são superiores às ‘femininas’,  que têm gineceu (do grego gyne, mulher)”, analisa Giselle.

Para a artista, “a botânica clássica antropomorfiza o mundo vegetal e faz das plantas um espelho do homem”. “O modo como se nomeia o mundo é o modo como se criam as divisões, os preconceitos, e se consolida o pensamento binário”. Por isso, afirma a artista, “a nomenclatura é um ritual de apagamento”.

A extensa pesquisa realizada durante um ano e meio permitiu reunir nomes de centenas de plantas que Giselle Beiguelman organizou em cinco grupos: antissemitas, machistas, racistas, e discriminatórios com relação a indígenas e ciganos (uma palavra contestada por associar grupos como roma e sinti a trapaça e roubo). Muitas dessas plantas têm sido categorizadas tradicionalmente como “ervas daninhas”, sempre combatidas, nunca erradicadas, característica que acabou sendo adotada pela artista como um manifesto de resiliência e de resistência, propondo um contra-discurso.

A artista destaca que as ervas daninhas, uma invenção colonialista para designar plantas “parasitas” e sem utilidade econômica, foram uma metáfora do discurso eugenista, “uma forma de racismo científico que defende a ideia de que o mundo é um jardim e que as chamadas ervas daninhas devem ser eliminadas para que a humanidade possa florescer”, diz.

A eugenia foi um movimento idealizado no final do século 19 pelo britânico Francis Galton, inspirado em seu primo Charles Darwin, que propôs o uso de práticas científicas dedicadas a melhorar características genéticas de gerações futuras a partir de seres humanos selecionados, descartando os demais.

O uso da Inteligência Artificial, ao mesmo tempo ferramenta e objeto de crítica, foi feito por meio de redes neurais generativas (StyleGAN): “Para tanto, estimulamos um curto circuito nos parâmetros da IA, de modo a rever os sistemas de padrões do mundo ocidental, que classifica tudo em categorias, centrais no pensamento taxonômico e nos pressupostos das metodologias de trabalho com IAs. Assim, ao mesmo tempo em que analisamos como parâmetros estéticos são criados a partir de preconceitos, usamos engenharias reversas para indicar caminhos para uma próxima natureza, sem categorias superiores dominando categorias inferiores”, afirma a artista.

Também produzidos com IA, cinco vídeos, um para cada grupo de pesquisa, compõem a série Flora rebelis. Um ensaio audiovisual de 15 minutos passeia pelos fundamentos e processos do trabalho de investigação e criação da artista, desde o nascimento da botânica até o uso de IA.

Também compõe a mostra o Jardim da resiliência, jardim circular montado no recinto expositivo e intervenções em áreas externas. Arrematando esta exposição de múltiplas mídias e linguagens, estão presentes três luminosos com as frases Toda erva daninha é um ser rebelde, A nomenclatura é um ritual de apagamento e Mais clorofila, menos cloroquina.

A mostra também conta com obras do artista convidado Ricardo Van Steen, que produziu sete aquarelas inéditas, de estética naturalista e científica, em que retrata jardins imaginários a partir de cada um dos grupos de pesquisa.

Para Felipe Arruda, diretor executivo​​ do Museu Judaico de São Paulo, “O preconceito e a intolerância, assim como a resistência e a resiliência, são temas centrais da experiência judaica ao longo da história, assim como desafios absolutos do nosso tempo. A abordagem dessas temáticas pela produção artística contemporânea é um dos eixos basilares do Museu Judaico de São Paulo, por isso a honra de expor a produção atual de uma artista com quase três décadas de uma inquieta atuação nas artes e na academia.”

A curadora da mostra, a crítica e pesquisadora Ilana Feldman, afirma que “Giselle Beiguelman é uma criadora de imagens dedicada a pensar a natureza das próprias imagens na contemporaneidade, mobilizando de maneira crítica, imprevista e inventiva a relação entre estética e política, arte e tecnologia”.

Giselle Beiguelman é artista e professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAUUSP). Pesquisa arte e ativismo na cidade em rede e as estéticas da memória na contemporaneidade. É autora de Políticas da imagem: Vigilância e resistência na dadosfera (UBU Editora, 2021), Memória da amnésia: políticas do esquecimento (Edições SESC, 2019), entre outros. Suas obras artísticas integram acervos de museus no Brasil e no exterior, como ZKM (Alemanha), Jewish Museum Berlin, MAC-USP e Pinacoteca de São Paulo. Recebeu vários prêmios nacionais e internacionais, como o Prêmio ABCA 2016, da Associação Brasileira dos Críticos de Arte e The Intelligent.Museum, com Bruno Moreschi e Bernardo Fontes, promovido pelo ZKM e Deutsches Museum (2021).

O Museu Judaico de São Paulo (MUJ), espaço que foi inaugurado após vinte anos de planejamento, é fruto de uma mobilização da sociedade civil. Além de quatro andares expositivos, os visitantes também têm acesso a uma biblioteca com mais de mil livros para consulta e a um café que serve comidas judaicas. Para os projetos de 2022, O MUJ conta com doação do Instituto Cultural Vale, Instituto CCR, Família Minev, Sotreq, Fundação Arymax, Dexco e Alfa Seguros.

 

Serviço

Botannica Tirannica, de Giselle Beiguelman
Museu Judaico de São Paulo (MUJ)

Curadoria: Ilana Feldman

Período expositivo: de 28 de maio a 18 de setembro
Local: Rua Martinho Prado, 128 – São Paulo, SP

Funcionamento: Terça a domingo, das 10 horas às 18 horas
Ingresso:  R$ 20
Classificação indicativa: Livre

Acesso para pessoas com mobilidade reduzida

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