É impossível não começar uma crítica sobre um filme argentino sem enaltecer a competência do roteiro, o que virou quase um chavão regional. Juan José Campanella é um dos nomes que ajudam a manter a alcunha, sobretudo após ser o responsável pelo último Oscar ao país com seu O Segredo dos Seus Olhos, e agora lança A Grande Dama do Cinema, uma dramédia sagaz em que apura sua habilidade em lidar com os códigos cinematográficos de uma trama.
Mora Ordaz (Graciela Borges, brilhante) foi uma grande estrela do cinema anos atrás, e hoje vive no ostracismo e na decadência de uma mansão caindo aos pedaços e cheia de ratos. O lugar é o reflexo do barroquismo falido em que vive. Ela mora com o marido, Pedro (Luis Brandoni, extraordinário), um péssimo ator que performava na época áurea da esposa, além dos adoravelmente cínicos, diretor e roteirista de seus filmes, Norberto (Oscar Martinez) e Martin (Marcos Mundstock).
Uma “família” inusitada e excêntrica da qual o diretor extrai muita humanidade e diálogos cheio de um espirituosismo mordaz, mesmo sob o conforto do saudosismo. A vida desse quarteto começa a implodir quando um casal de jovens chega a residência, teoricamente perdidos e precisando usar o telefone, e reconhecem a atriz, dando ponto de partida para um intrincado envolvimento entre eles.
Adaptação de um clássico portenho de 1976, Los Muchacos de Antes no Usaban Arsénico, de José Martínez Soárez, o longa traz muita a influência de outro clássico, Crepúsculo dos Deuses (1950), obra-prima de Billy Wilder especialmente na observação afetiva e corrosiva de personagens em conflitos de identidades. Mas Campanella adensa essa referência através do humor farsesco dialogando competentemente com as convenções do melodrama.
E mesmo que o roteiro às vezes esbarre no limite do absurdo (especialmente num momento de virada da história), é muito saboroso de acompanhar a inteligência com que ele é desenvolvido. Assim como o domínio do diretor para que essas linguagens funcionem, tornando o resultado divertidíssimo. A rapidez dos diálogos, o timing e compreensão dos atores veteranos (que estão se divertindo) e a direção encadeada de Campanella resultam num filme que não só é reverente ao próprio cinema como a nós espectadores. Um luxo nos dias atuais.
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