Era início dos anos 80. O mundo vinha da revolução sexual e novas configurações comportamentais ditavam a sociedade como um todo. E eis que nessa perspectiva, surge uma epidemia misteriosa que dizimava muitos homossexuais. Era a AIDS. Era o mundo lidando com uma doença que carregava em si uma espécie de dogma gay, que na prática fazia aumentar a repulsa generalizada por essa minoria. Dentro desse caos de onde não se sabia muito do que se tratava, um ativista lutava contra os descasos iminentes do governo e assim angariar algum fiapo de dignidade para os que sobreviviam. Larry Kramer se notabilizou por isso e mais tarde escreveu The Normal Heart, que virou esse interessante e doloroso telefilme da HBO (é possível assisti-lo no Now), dirigido por Ryan Murphy. O resultado é um retrato em que a contundência se paraleliza com a (des) humanidade com que o período marcou o microcosmo gay de uma Nova York aturdida pela velocidade com que a doença se espalhava. A volúpia masculina é mostrada sem pudores, como que para ilustrar o hedonismo reinante no meio. O instinto masculino justifica os aparentes extremos. Com a disseminação da doença, as consequências sobre o corpo são dramáticas, num tempo em que não havia qualquer tipo de tratamento.
Mark Ruffalo esbanja assimilação cênica como Ned Weeks, uma representação de Kramer, que com sua personalidade forte e passional, brigava pelo meio e lutava pela vida do namorado soropositivo (Matt Bomer). Julia Roberts é a médica paralítica Emma Brookner, uma das primeiras interessadas em descobrir alguma solução que valha para contornar a doença. O mais chocante é a forma omissa com que as autoridades – muito pelo julgamento moral – trataram o tema. Com isso, o filme revela-se um revoltante panorama sobre como a AIDS existe enquanto metáfora de uma marginalização de um segmento sexual. Essa marginalidade imposta pela sociedade de ontem ainda reflete sobre as estatísticas de que cerca de 6 mil pessoas contraem o vírus por dia, no mundo. A luta desses ativistas – que na época se organizaram à revelia do governo – ajudaram para que esse número não fosse ainda maior. E para tal, essas mesmas estatísticas também denotavam que a doença estava longe de ser estritamente gay. Falando do longa em si, há problemas na montagem e um certa prolixidade de Murphy (algo já percebido em seu filme anterior, o irregular Comer, Rezar, Amar), mas a força de seu discurso dramatúrgico é maior que suas pequenas falhas. “The Normal Heart” é severamente triste. Num determinado momento, a trama mostra como o Estado encara o cadáver de uma vítima da doença. E é aterrador. Ali entendemos que a luta pela sobrevivência daquela época, era na verdade a luta pela dignidade. Como cidadães, como filhos, como homens. Porque se a doença já arrancava tudo isso desmedidamente, era no mínimo desesperador que o Estado simplesmente virasse as costas para tal. Diante disso tudo, o filme acerta ao jogar luz sobre os sobreviventes. Da doença, da própria vida e do vírus da indignidade.
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