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Música de Montagem lança o álbum Rua

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A banda Música de Montagem, liderada pelo compositor e instrumentista Sérgio Molina, passou por transformações violentas que mexeram tanto em sua formação quanto em seus rumos musicais, chegando ao segundo disco, batizado de Rua, um tanto diferente, mas sem perder seu principal foco: equilibrar música pop e questionamentos sérios, tanto estéticos quanto conceituais, como convém a um representante de linhagem tão nobre e ao paradoxalmente marginal, reforçando seus laços com a urbe paulistana.

A transição do primeiro para o segundo álbum de qualquer artista normalmente não é tão brusca. Mas o que acontece quando entre um disco e outro uma força maior tira as pessoas das ruas e impede apresentações musicais de serem feitas frente ao público?

O dilema da pandemia – que atravessou a vida de todas as pessoas vivas e abalou as carreiras de todos os artistas musicais do planeta – teve um desdobramento singular para o Música de Montagem. Não bastasse ter ficado sem palcos para comunicar-se ao vivo, a pausa – então eterna – acabou provocando uma mudança na formação num momento em que o músico e professor Sergio Molina se reencontrou com o piano e passou a trabalhar com samplers. É assim, entre uma troca de integrantes, a consolidação do formato coletivo, uma nova forma de compor e uma pandemia, que Rua, o segundo disco do grupo, começa a nascer, ainda em 2020.

Este segundo álbum do Música de Montagem é filtrado por tais transformações. O período pandêmico abriu espaço para os novatos Vitor Ishida e Xofan se juntaram às integrantes remanescentes – a baixista (e companheira de Molina) Clara Bastos e a baterista Priscila Brigante. 

O isolamento social daquele período também fez com que Molina se voltasse para o piano e começasse a compor baladas enquanto vislumbrava o novo trabalho a partir de novos desdobramentos decorrentes da tragédia que atravessamos, ao mesmo tempo em que mexia com loops e samplers que lhe deram ideias para canções mais dançantes. Foi quando surgiu o que seria a primeira semente do que se tornaria Rua. Convidado pelo Sesc São Paulo para reunir diferentes artistas pela internet e criar uma canção em público dentro de um projeto intitulado Laboratório Música em Nuvem, ele chamou Clara e Priscila, que já faziam parte da banda, a cantora Juçara Marçal, o trompetista Romulo Alexis, o também compositor Marcelo Segreto (líder da banda Filarmônica de Pasárgada), o engenheiro de som Gustavo Lenza (que mixaria a nova faixa) e o crítico carioca Túlio Ceci Villaça (que escreveria um ensaio sobre o processo). O produto deste laboratório, a faixa “Escuta”, era o primeiro passo do novo álbum.

Foi somente após o experimento, que Sergio encontrou novos integrantes para embarcar neste novo processo e isso começou com a impressionante vocalista Xofan, que então era apenas fã inveterada do grupo (a ponto de ir em quase todos os shows da banda antes da pandemia), e que também era aluna de Molina na universidade. Foi Xofan quem sugeriu Vitor Ishida e quis o destino que os dois novos integrantes nascessem no mesmo 13 de março em que Molina aniversariava. Uma coincidência considerável a ponto de reforçar a nova natureza coletiva do grupo. 

Embora tenha o mesmo nome do primeiro livro de Molina (“Música de Montagem: a Composição de Música Popular no Pós-1967”, de 2018, um ensaio teórico sobre a revolução na produção musical liderada pelos Beatles a partir de sua obra-prima Sgt. Pepper’s), a banda é um processo paralelo aos questionamentos acadêmicos a respeito da canção popular em tempos de pós-produção musical que o levaram ao livro e seu batismo, a partir de um conceito teórico do crítico cultural alemão Walter Benjamin (a obra de arte montável). Música de Montagem (a banda) também trabalha num lado industrial do fazer musical, transformando a montagem de estúdio num processo também mecânico e repetitivo, que conversa com a música pop da virada do século. 

Essa montagem do título do grupo também está vinculada com a rotina da cidade de São Paulo, que é simultaneamente industrial e artesanal, equilibrando facetas da metrópole que se contradizem e se completam, que conversam com o samba torto da cidade e com o tortuoso caminho do rap brasileiro, que tanto fascina os baianos que fundaram nela o tropicalismo quanto provoca sentimentos mistos nas gerações roqueiras das décadas de 70 e 80, além do elo que a tradição local tem com a música erudita e contemporânea. Como se o grupo conseguisse criar uma paisagem estranhamente familiar a partir de peças que, apesar de distintas, se encaixam inventivamente de forma quase mecânica, como uma linha de montagem.

Isso reflete-se no processo criativo do grupo, que começa com as canções de Molina que depois são rearranjadas coletivamente, ainda mais nesta nova fase da banda. E depois de lançar em 2023 outros dois singles mostrando a transição do grupo (“Alada” e a regravação de “Melancholia II”, do primeiro álbum), o grupo começou a amalgamar o fruto deste período transformador para dar origem a um disco conciso que contempla duas facetas específicas, ambas equilibrando questionamentos filosóficos e comportamentos cotidianos: baladas e músicas pop (a partir do entrosamento de seu líder com o piano e com o sampler, respectivamente), uma equação que ecoa sua própria ascendência musical da cidade de São Paulo, que mistura referências modernistas e tropicalistas à cena ao redor do Lira Paulistana e o rap da cidade.

Desde o início do álbum – em que o ritmo quebrado em que a bateria de Priscila se engalfinha com o groove do baixo de Clara, o riff arranhado da guitarra ruidosa de Vítor, o violão distorcido de Sérgio e a voz de Xofan para colocar “Psiu” em andamento -, Rua mostra o Música de Montagem expondo-se como o degrau contemporâneo desta escalada que reúne as certezas da música pop e incertezas sobre o rumo da canção e da nossa sociedade. 

A genealogia que coloca o grupo como um dos principais representantes da atual vanguarda paulistana inevitavelmente passa pela experiência de Clara ao lado de Itamar Assumpção, pela guitarra antiguitarra de Vítor, pelo piano pelo qual Sérgio rege grande parte do disco, pela bateria metronômica de Priscila e pelos vocais encantadores de Xofan, que de vez em quando alça voos melódicos ou pisa no chão com seu canto falado nos raps que filtram algumas canções. As baladas ao piano (“Sentido”, “Elegia” e “O Espelho”) que Sérgio confessa inspiradas tanto em Paul McCartney quanto em Arnaldo Baptista, são um diferencial deste novo trabalho, mas as faixas mais funky (“Psiu”, “Quem Será Que Eu Sou?” e a faixa-título) conectam criativamente com o primeiro álbum, enquanto “Escuta”, que traz Juçara Marçal nos vocais, acaba sendo um ponto de encontro entre as duas metades do disco.

Juçara é uma das participantes do experimento de 2020 que fez o disco começar a nascer que persistiram até o resultado final. Além dela também entrou no processo Marcelo Segreto, com quem Sérgio estreitou os laços criativos no citado laboratório passando a ser um dos principais letristas do disco, assinando “Escuta”, “O Espelho” e parte da faixa-título, ao lado de outros parceiros como Kléber Albuquerque (que escreveu as letras de “Quem Será Que Eu Sou?”, “Psiu” e “Rua”) e a poeta Lilian Jacoto (autora das letras de “Sentido” e “Elegia”). E Lenza, que mixou a canção experimental de 2020, foi convidado para mixar o disco produzido por Sergio, que ainda contou com a masterização a cargo de Felipe Tichauer nos EUA. Completam o time de Rua os vocais de Aninha Ferrini, Melina Molina e Klaus e a arte de Lia Assumpção, que assina a capa do disco.

E assim o Música de Montagem nos apresenta um novo trabalho, que mantém sua essência musical e lírica, mesmo passando por grandes transformações. Rua é um salto considerável em relação ao primeiro disco sem precisar negar ou contradizer as questões do disco de estreia.

(Texto de Alexandre Matias)

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