Escritos ao fim da vida, quando o autor se via à beira de uma crise nervosa e criativa, os Três contos de Gustave Flaubert (1821-1880) constituem um dos pontos mais altos da literatura francesa do século XIX.
Ao retornar a temas, figuras e paisagens que o acompanhavam desde a juventude, Flaubert destilou uma suma de sua obra nas breves páginas do último livro que chegou a completar. Aqui estão a Normandia natal e o Oriente que o fascinava; a gente provinciana e os personagens ímpares, os medíocres de todo dia e os santos de exceção; o cálculo mesquinho e o arrebatamento bestial; o realismo implacável e o voo visionário.
Seja narrando o meio século de servidão de uma criada em “Um coração simples”, seja desdobrando a tapeçaria alucinada da “Legenda de São Julião Hospitaleiro” ou ainda reinventando um episódio bíblico em “Herodíade”, Flaubert levou a arte da ficção a extremos e territórios pouco explorados. Seu contemporâneo Henry James não tardou a ver “um elemento de perfeição” neste livro de 1877; e o próprio Flaubert, a meio caminho da redação destes Três contos, confidenciava numa carta: “Tenho a impressão de que a Prosa francesa pode chegar a uma beleza de que mal se faz ideia”.
A nova edição sai pela editora 34, na Coleção Fábula, tradução de Milton Hatoum e Samuel Titan Jr., com 144 páginas, R$ 44,00.
Texto de orelha
Penúltimo livro escrito por Flaubert, este é, de certa forma, a chave de ouro de sua obra. Exausto de explorar as bobagens coletivas adotadas por Bouvard e Pécuchet, o escritor decidiu provar a si mesmo que “ainda sabia escrever uma frase”; e provou-o de forma definitiva. À primeira vista, os três contos que compõem este volume são muito diferentes. A primeira história é contemporânea do autor, a segunda se situa na Idade Média, e a terceira, na Antiguidade. Na verdade, elas têm uma íntima conexão. São três histórias de santos: uma santa que se ignora, um santo assassino e um santo profeta. E elas correspondem às três vertentes da obra do escritor: o realismo de Madame Bovary, o imaginário quimérico d’As tentações de Santo Antão e o orientalismo arcaico de Salammbô. A história literária, simplificadora, rotulou Flaubert de realista, negligenciando outras facetas do escritor: o romântico recalcado que sufoca seus gritos, o visionário atraído pelo fantástico, o adulto saudoso das lendas cristãs de sua infância.
Outros traços ligam os três contos. Neles, os animais têm papel preponderante: o papagaio de Félicité, as vítimas de Julião, as iguarias do banquete de Herodes. E a animalidade está presente em todas as personagens: a bestialidade inocente da criada, a ferocidade selvagem do santo e a avidez de Herodíade, manipulando a sexualidade do tetrarca. A veste de pele que recobre João Batista também o aproxima da fauna, e seu olhar brilhante é descrito com as mesmas palavras com que o escritor se refere ao olhar dos animais nos outros contos. Essa presença da animalidade mostra o ser humano como sendo capaz de todas as crueldades, assim como de sublimar seus instintos até a santidade.
Outra constante do romancista, presente nos três contos, é a fascinação pelo acúmulo de objetos e pormenores: o quarto atulhado da criada, a variedade indumentária da multidão medieval, as bandejas repletas do festim oriental. Como na preparação de Bouvard e Pécuchet, Flaubert procedeu a vastas pesquisas históricas e científicas para compor esses contos. Mas, neles, a erudição é oculta em prol da concisão narrativa, da riqueza de sugestões plásticas e da perfeição da frase. Segundo ele mesmo, o mais difícil de conter foi “Herodíade”, que ameaçava transformar-se num romance de trezentas páginas.
Em 1854, numa carta a Louise Colet, o romancista escreveu: “Penso frequentemente, com ternura, nos seres desconhecidos que ainda vão nascer, estrangeiros etc., que se emocionam e se emocionarão, como eu, com as mesmas coisas. Um livro cria para nós uma família eterna na humanidade. Todos aqueles que viverão de nosso pensamento são como filhos em torno da mesa de nosso lar.” Ao trazer os Três contos até nós, nesta excelente tradução, Milton Hatoum e Samuel Titan Jr. oferecem aos leitores brasileiros a mesa fabulosa de Flaubert.
Leyla Perrone-Moisés
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