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Quatro perguntas para a escritora Cristina Judar

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Cristina Judar é escritora e jornalista paulistana, autora das HQs “Lina” (Editora Estação Liberdade), “Vermelho, Vivo” (Devir). Na seara da literatura, publicou o livro de contos “Roteiros para uma Vida  Curta” e seu recente romance “Oito do Sete” (ambos publicados pela editora Reformatório). Cristina respondeu a quatro perguntas. Confira abaixo:

1) Como foi concebida a ideia de ter um quadrilátero de relações entre duas mulheres e dois homens?  

Essa passagem do livro é uma desconstrução daquilo que se espera como normal ou aceitável em termos de conduta sexual para duas mulheres lésbicas (Magda e Gloria, as protagonistas do livro) e dois homens, (que, por sua vez, são gays). Daquilo que é normal e aceitável na vida, assim como na literatura. Até mesmo na própria comunidade LGBT. Retrata o risco, o escárnio, a ausência de regras vividas por esses personagens até o limite, em diferentes aspectos de suas vidas – não somente o sexual.

Sobre essas questões, muito ainda precisa ser discutido, escancarado. A maioria das pessoas, têm, sobre LGBTs, a visão viciada e previsível que se instalou na mídia e esperam que essa visão seja reafirmada pelos produtos culturais. Eu poderia escrever uma tese sobre isso (risos), mas prefiro ficar por aqui mesmo.

2) Na linha que divide terra e água, finito (vida) e infinito (ideia do universo), possessões (humanas) e vida secreta dos anjos, aparecem algumas ótimas fronteiras para falar sobre sexualidade e desejo. Como foi este processo?

Parti de uma visão particular, que considera o que está na terra e no céu como igualmente divinos, sem separações. O Serafim, por exemplo, vive seus próprios conflitos enquanto é a personificação desse conceito. O tempo todo ele nega ter em si qualquer semelhança com os humanos. Justifica-se de diversas formas, constrói teorias sobre sua constituição física e espiritual. Por outro lado, é evidente que sua parcela terrena é tão atuante e fundamental quanto a celestial. E é aí que reside o equilíbrio. E é aí que ele se mostra também humano.

Ele interfere nas realidades de seis céus ou esferas (a razão de ele possuir seis asas), que podem ser vistas como paralelas, faixas de coexistência livres da classificação “superior X inferior”. Justamente por ter essa capacidade, ele é um Serafim. É condutor do fogo, que está presente na sexualidade, assim como no sol.
Mas o desejo, em Oito do Sete, está em toda parte. Inclusive, nas preferências e no fetiche de Magda por materiais e objetos de origem sintética usados na confecção de suas roupas, na decoração de sua casa.

3) Como é teu método de observação para personagens para a composição tanto de enredo como a construção de seus processos de exteriorização?

Não há um método. Se houvesse, eu não o respeitaria (risos). Fujo de processos muito rígidos. Mas a observação e a construção ocorrem, claro. Mesmo que de forma caótica, como uma “organização desorganizada”. O foco pula do externo para o interno, até um ponto em que fica difícil distinguir entre uma coisa e outra. A imagem que gerou determinada impressão ou sentimento pode ser amplificada e servir de matéria-prima para a criação de um personagem, assim como determinado sentimento ou necessidade de externar algo podem casar com uma cena imaginada e, ali, encontrar o terreno perfeito pra serem expressos em palavras. Sei que a resposta está um pouco nebulosa, é difícil falar sobre isso, não tenho uma noção clara de como isso acontece. Mas posso dizer que tudo é muito intuitivo e ocorre praticamente o tempo todo.

4) Calvino dizia que uma cidade é um dos emblemas mais fascinantes que possam existir, pois dentro dela há inúmeras possibilidades de se perder dentro dela, pois há desejo, leveza, peso, visibilidade, e outras tantas características. Como foi Roma para você?  

Eu procurei traduzir a voz do lugar, de uma essência mantenedora de todas as informações, da história relacionada àquela região. Pensei em Roma como uma velha senhora, maternal, dramática, sanguinolenta, falastrona. Ela foi o destino escolhido por Gloria, uma refugiada que nela procurou outros sentidos e uma nova vida. Representou uma espécie de útero para uma mulher que já não tinha chão no Brasil. Roma foi a receptora dos filhos não-nascidos de Gloria.

Com tudo isso em mente e com os sentidos alertas, procurei retratar Roma como de fato ela é na atualidade: incessantemente pisoteada e pouco notada pelos transeuntes ocupados com seus smartphones e souvenires. Por essas e outras, Roma grita, quer ser ouvida. Ela foi a conexão necessária para que a trama estivesse, ao meu ver, completa. Ela é a soma da voz de todos os que por ali passaram. Eu não teria personagem melhor para “arrematar” o livro. Quando o solo no qual pisamos passa a ter voz, e essa voz é considerada, a relação com a terra, com as pessoas e com nossa própria vida passa a ser outra. Oito do Sete é, em síntese, um livro sobre a busca de nosso lugar no mundo.

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