Marcel Vieira está lançando o livro Camaradas, pela editora Patuá. Fizemos quatro perguntas para o escritor. Confira abaixo:
1-) Há um “nervo” exposto dentro da sua forma de narrar, sempre com uma força dramática que encena uma violência que você acompanha neste enredo de uma tragédia. Você usa uma escrita forte para a linguagem com a mesma fervura que você narra sua história. Como foi pensar no tipo de linguagem que você queria para a narração do seu romance?
Acredito que a linguagem da narração, ou os tipos de narradores, constituíram por muito tempo um problema central para o romance moderno. A ideia de “ver através” dos personagens, de que fala Joseph Conrad, me parecia importante para a minha história, porque o livro lida com eventos reais (a tragédia da queda da barragem de Camará, que devastou cidades do brejo da Paraíba no início dos anos 2000) vistos através de personagens ficcionais.
Como o “ver através” implica também um distanciamento entre narrador e personagem, me interessava romper um pouco mais essa cisão com o recurso da metaficcionalidade, carregado com as interrupções reflexivas do narrador. Uma pergunta recorrente no livro subjaz essas escolhas: quem conta a história tem “autoridade” (ou “autorização”, no caso do lugar de fala) para contá-la?
Quando a violência – sobretudo a violência institucional – se torna uma força motriz naturalizada no funcionamento das sociedades, creio que cabe à narrativa (nesse caso, à literatura) a tarefa de tensionar os discursos oficiais, os pareceres técnicos, as decisões de uma justiça mais interessada em ser um poder, que um direito. É uma escolha ética, no fim das contas: o narrador, para mim, é sempre um juiz da memória, um árbitro do que deve ser lembrado e do que deve ser esquecido.
Decidir, portanto, o que cabia ser narrado, foi um problema que sempre tive no horizonte enquanto escrevia o livro. Não porque me interessasse apenas a verdade. Pelo contrário: a fabulação me fazia ver a tragédia com olhos muito mais vivos que os documentos factuais, os relatórios sobre a queda da barragem, as notícias de jornal, os volumes dos processos judiciais, etc. Por isso que há duas pontas temporais fortes no livro: o assassinato de um menino em meados dos anos 1960 e a própria queda da barragem, nos anos 2000.
Há uma conexão entre o que não ocorreu (porque é fabulação), mas que poderia ter ocorrido (porque é possível), e o que aconteceu de fato (a tragédia de Camará) mas que parece não ter ocorrido (porque as instituições se esforçam para que não seja lembrado). Para mim, esta é uma das maiores violências e, por isso, a questão mais forte do livro, que transparece num dos momentos reflexivos do narrador: “a única remissão possível para os crimes de Estado e para a tortura dos subalternos e para a opressão sobre os desvalidos é o relato subversivo da memória, pois a verdadeira luta pelo poder, a disputa que define o nosso lugar neste mundo, é na verdade para controlar o esquecimento”.
2-) Queria que você falasse um pouco da culpa. Seus personagens, tirando Rubens, parece que não sentem nenhum tipo de remorso ou vergonha pelo crime. Que ao se isentarem da responsabilidade criminal há um tipo de comportamento deles como se fossem imunes tanto às lembranças quanto à lei. Que tipo de imagens ou reflexões vocês quis tirar desta conduta dos personagens que participam da caçada?
Essa é uma questão muito importante em Camaradas, porque, no fim das contas, a culpa é o principal motivo para a existência do livro dentro do livro: sem ela, o narrador nunca saberia do crime que houve no passado, nem do seu papel na vida presente dos personagens. Por outro lado, não parece haver muito espaço para que esses personagens (homens, lembremos bem) se ressintam perpetuamente, naturalizando uma certa violência que estrutura as relações naquela pequena cidade do interior da Paraíba.
Nossa matriz cultural colonialista, sobretudo no Nordeste, impõe diversas práticas de ordenamento simbólico da vida social que são muito fortes, até hoje. Em autores como Graciliano Ramos e José Lins do Rego (duas influências na minha formação como escritor), essa matriz aparece de modo muito intenso, seja nas “estupidezes” de um Paulo Honório, em São Bernardo, seja na humilhante submissão do Mestre José Amaro, em Fogo Morto.
Para mim, interessava em Camaradas trazer isso para o ambiente mais urbano, inevitavelmente globalizado da contemporaneidade, que saiu do interior e foi para a capital, mas que ainda guarda as lógicas patriarcais e arcaicas da nossa matriz colonial. Por isso, acaba sendo naturalizado o desfecho macabro que se seguiu à descoberta do crime, e que implicava, necessariamente, na manutenção do status quo e dos lugares sociais que os personagens ocupam na história. Quem bagunça com tudo isso, no fim das contas, é o próprio livro, é a vontade e o impulso que o narrador tem para contar essa história e tentar, assim, que a literatura seja um lugar não apenas de justiçamento, mas também de remissão.
3-) Seu livro me fez pensar nos círculos sociais que sintetizam as bolhas no país, criando tanto tipos de favorecimentos quanto impunidade com relação à crimes. Nossa cultura é uma cultura da afronta à lei; ao desvio da norma, à permissividade com relação tanto à uma política cotidiana (do jeitinho) até casos de corrupção endêmica. Fale um pouco disso?
Essa é outra questão que me interessa, e que aparece no livro precisamente no embate entre as forças que operam para desvelar e para ocultar a verdade da vida. Não parece um conflito simples, fácil de ser visualizado a priori. Afinal, uma das chaves do pensamento ocidental no século vinte foi precisamente colocar em perspectiva a ideia de verdade, entendendo-a como construção histórico-social inevitavelmente atravessada por interesses políticos, econômicos, culturais, etc. No entanto – e esta é, creio eu, uma das grandes questões do nosso tempo –, a verdade posta em perspectiva não pode, nunca, ser suplantada por um império do falso, do abjetamente mentiroso, da falácia cínica que se camufla de evidência concreta.
No caso brasileiro, para além das bizarrices de um conservadorismo tacanha, as violências políticas recentes geraram uma grande disputa pelo sentido dos termos e pelo significado dos fatos. Um exemplo: em 2016, tivemos uma agressiva articulação entre forças do legislativo, do judiciário e da mídia para derrubar a Dilma. O que houve, portanto, foi um impeachment ou foi um golpe? Para cada lado do espectro político, os discursos estão disputando até hoje a verdade deste fato. Mas, e se levarmos em conta que o que houve, na verdade, foram ambos? Um impeachment e um golpe. O mesmo se aplica ao caso do Lula. Ele enfrentou o devido processo legal? Sim. Mas ele é um preso político? Também sim.
Quando a gente põe a verdade em perspectiva, não significa que um termo do problema tem que, necessariamente, anular o outro para se mostrar válido, mas que ambos podem concorrer, dialeticamente, para uma plausível interpretação dos fatos. Voltando a Camaradas, o esforço do narrador em contar a história com atenção aos fatos, mas não encontrar evidências concretas que expliquem o que houve de verdade, leva a ficção ao seu paradoxo mais sublime: a verdade da vida pode aparecer, mesmo apresentada em meio à mais ardilosa fabulação. É um pouco isso que me motivou na construção deste relato.
4-) Há um interessante inflexão no seu título (por eles serem camaradas até o crime acontecer, depois é só individualismo). O mito do homem cordial brasileiro vai até onde? quando as coisas apertam? ou pioram?
Acredito que a ética da camaradagem que estrutura, em larga escala, o imaginário do que é ser brasileiro constitui um fenômeno simbólico muito complexo, que me interessou bastante para a construção dos personagens no romance.
Camaradagem, cordialidade, compadrio ou patrimonialismo, ao cabo, são noções que tentam dar forma a uma maneira específica de relacionamento entre as pessoas por aqui, calcada numa dialética da malandragem (para lembrar do conceito de Antonio Candido), em que é possível operar na ordem e na desordem, a depender dos interesses em jogo. Isso está na política, está na justiça, nas relações de trabalho, no ambiente doméstico. Por um lado, há uma promiscuidade grande nessas relações, sobretudo quando envolvem os limites entre o público e o privado. Por outro lado, o coleguismo e a amistosidade que muitas vezes transparecem como vantagens desse ethos cordial, estão cada vez mais ameaçados pelo individualismo inerente ao capitalismo contemporâneo, esse capitalismo cognitivo, do trabalho perene, da competição incessante, da soberania do empreendedorismo ante a solidariedade.
Em Camaradas, isso aparece desde já na estrutura do livro: apenas no primeiro capítulo é que vemos todos os amigos juntos, nos momentos que antecedem o crime. Depois, é cada um por si, cada capítulo se centra nos efeitos e nos desfechos do que houve. Por outro lado, a trama do livro começa a conectar os dois tempos exatamente com a tragédia de Camará, quando Rubens conhece Silmara, e o passado de repente volta e precisa ser narrado.
É na calamidade que os personagens, outrora alijados em seus individualismos, passam a pertencer novamente a uma comunidade, a estabelecer mais uma vez uma certa partilha entre as vítimas e os criminosos, entre os abastados e os desvalidos, entre os que se exibem e os olvidados. É ao se ver, de repente, unido por este sentimento estranho de coletividade que Rubens reativa sua culpa, a culpa que move o livro e que faz, por fim, com que o crime do passado e a tragédia de Camará sejam, dialeticamente, versões complementares de uma mesma violência que se perpetua.
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