Solano Guedes fala sobre seu livro A história dos três pontinhos

 

Em 2009, o escritor e artista visual Solano Guedes lançou A história dos três pontinhos, pela Vieira & Lent Casa Editorial, livro que teve um percurso de sucesso em âmbito nacional, sendo adotado em diversas escolas particulares, algumas secretarias municipais de cultura, além de ter tido edição especial pela Prefeitura de Belo Horizonte, no ano de 2010. O trabalho é parte da Trilogia das entrelinhas e agora, em 2021, está sendo relançado, dessa vez pela Editora Zouck.

Solano Guedes é também poeta e letrista. Foi aluno do curso de Artes do IART-UERJ, tendo participado de eventos diversos da cena alternativa de arte no Rio de Janeiro. Em A história dos três pontinhos, assina também o projeto gráfico que acompanha o texto e que não é coadjuvante no enredo. Os dois outros títulos da Trilogia das entrelinhas também terão relançamento em 2021: A revolta das vogais e O eu que não sabia ser eu. Sua mais recente publicação é Mu{l}tilado (Mundo Contemporâneo Edições, 2019), primeiro livro de prosa poética voltada ao público adulto. Solano Guedes é carioca e topou conversar com o Ambrosia sobre seu trabalho literário.

 

Fale-nos um pouco sobre seu percurso como escritor.

Venho de uma família de escritores. Meu pai, Arnaldo, é poeta e escritor, e seus irmãos, Reginaldo e Girlam, foram publicados por conta própria, em Nova Friburgo. Por outro lado, sou sobrinho da Fátima Guedes, intérprete e compositora. Então cresci num ambiente onde dominava-se a palavra escrita, fosse em poesia ou prosa, nada disso me era estranho e mais, todos à minha volta falavam muito bem. Logo, foi um processo natural me arriscar na poesia ali por volta dos 12 anos e também por essa época meu empenho nas redações passadas pelos professores de português e literatura do Colégio Franco Brasileiro era bem superior ao de meus colegas. Nesse colégio, tive uma redação passada como texto de interpretação para a minha própria turma. Até hoje me lembro do texto corrigido, datilografado e xerocado chegando até minhas mãos em minha carteira no fundo da sala. Eu tinha 13 anos e era autor pela primeira vez. Também no Franco, em 1997, fui premiado com os 3 primeiros lugares de um concurso interno de poesia, hors concours, por lá se falava muito francês. Saí do colégio, posso dizer de algum modo, me entendendo um artista. Estava sempre entre a imagem e o texto, e naquela época já estava assim há algum tempo. Meu percurso como escritor, respondendo de forma direta à pergunta, reside no hábito. No hábito de sempre escrever. No hábito de sempre manter um caderno ou cadernetas por perto, para que à mão, fizesse minhas anotações. No hábito de acumular esses cadernos e cadernetas com anotações, textos curtos e longos, acumular muitos arquivos escritos no editor de texto ao longo dos anos muita vez apenas para vertê-los no lixo ou deletar tudo. Como muitas e muitas vezes fiz. Esse hábito pode também ser encarado como um vício, se pensarmos o Facebook, tanto mais, pois possui uma disciplina independente e absolutamente não planejada, vinda de algum tipo de necessidade, algo que só encontro na nicotina hoje em dia. A trajetória traz basicamente esses elementos até hoje, pode ser que algo mude. É impossível para mim prever.

A história dos três pontinhos é parte de uma trilogia. Você poderia falar um pouco sobre os outros títulos, que também serão lançados este ano? 

Em primeiro lugar, eu classificaria essa trilogia como orgânica, se opondo aí ao conceito de uma trilogia programada. Involuntariamente trabalhei dentro de um mesmo ambiente criativo, digamos assim, e terminei por concluir três títulos cujas temáticas conversavam. Com espaçamentos consideráveis entre o processo de produção (escrita e ilustração) e até mesmo a chegada dos volumes ao mercado editorial. Em A revolta das vogais, lançado pela primeira vez em 2011, a questão de base abordada pelo livro é a necessidade de uma convivência pacífica e colaborativa entre maiorias e minorias. A metáfora escolhida é o alfabeto e sua minoria de vogais e maioria de consoantes. Um tanto óbvio, na verdade, mas ainda assim válido. O enredo se vale de uma trama bem articulada e algum humor nem sempre raso, além uma crítica social quase sub-reptícia que faz com que o livro possa vir a ser encarado apenas como material paradidático para os professores de português. Isso não é intencional. Na verdade, apontei A revolta das vogais na direção da discussão que perpassa o movimento LGBT inicialmente, penso que o livro discute injustiças sociais de um modo geral, se lido de forma mais ampla e segue até o fim propondo o entendimento e a colaboração como saída sempre. O eu que não sabia ser eu, lançado originalmente em 2016, dialoga diretamente com a A história dos três pontinhos por também possuir um projeto gráfico onde as ilustrações são texto. Ao esmiuçar os dilemas filosóficos do sujeito, o livro trabalha com um outro tipo de humor, mais sóbrio talvez, certamente menos fácil. Narrando uma crise existencial de um pronome do caso reto, a história segue até o fim repleta de questionamentos essencialmente ligados à natureza humana. Certamente dos três volumes é o que mais se aproxima de conceitos que talvez se encontrem em algum lugar da filosofia ou em outros da psicanálise, assuntos sobre os quais ouvi falar um pouco. É um livro reflexivo, todo voltado para as questões subjetivas. Pode, a exemplo dos outros dois títulos, ser usado diretamente no ensino da língua portuguesa também, mas, em O eu que não sabia ser eu, fica claro que falo de alguma outra coisa, algo que talvez não esteja sequer ali, no livro. Se continuar, dou spoiler.

Em que ano o livro A história dos três pontinhos foi escrito, em que ano publicado pela 1a vez e como ele chegou ao mercado editorial?

A história dos três pontinhos foi escrita em 1999, em guardanapos de papel num bar na São Salvador, em Laranjeiras, no Rio. Eu tinha 19 anos. Era o trabalho final de um curso de design que eu fazia. Por alguma razão acreditei no trabalho e finalizei seu projeto gráfico, fazendo mesmo uma primeira impressão por demanda (10 exemplares) na Fábrica do Livro, em 2002. Esses exemplares se perderam ao longo dos anos, me sobrando apenas um. Hoje é uma relíquia guardada à parte de meus outros livros. Foi esse exemplar que chegou às mãos de Cilene Vieira e Raphael Vidal, em 2009, na Vieira e Lent Casa Editorial, através das generosas mãos de Flávio Corrêa de Mello, um colega que acabava de ser contratado pela editora. Duas semanas após a leitura do original, o contrato foi assinado e em um mês o livro seria lançado na varanda da Livraria do Museu, no Museu da República, durante a Primavera dos Livros. A Vieira e Lent Casa Editorial, na figura de Cilene Vieira, trabalhou uma distribuição nacional do livro que acabou adotado por diversas instituições, inclusive uma edição especial para a prefeitura de Belo Horizonte, em 2010.  O trabalho de Cilene Vieira e seu assistente Raphael Vidal como editores foi primoroso, eu realmente sou muito grato aos dois. Era uma outra época e, sim, tive muita sorte.

Poderíamos dizer que A história dos três pontinhos pode ser classificada na categoria de livro infanto-juvenil?

Eu, de maneira nenhuma, escrevi o livro pensando em crianças. A história dos três pontinhos fala em sair da casa dos pais, fala em mercado de trabalho o tempo todo, faz referência clara à condição homossexual, a se assumir homossexual. De forma implícita, o texto fala de drogas e até de prostituição. Há uma citação ao movimento hippie. O livro é explícito na condenação ao capitalismo, às péssimas condições de trabalho, ao estresse, sobretudo aos valores propostos pelo modelo liberal e seus inevitáveis adjetivos pejorativos…seriam esses temas infantis? Juvenis? Penso que não. Eu mesmo os acho até hoje não só adultos como bem atuais. Há uma associação inevitável do título do livro com A história dos três porquinhos e, talvez daí, ou do uso do diminutivo, tenha ficado essa pecha de que se trata de um livro infantil ou infantojuvenil a priori. E a priori não se trata disso, não para mim, mas, ainda assim, penso que se o volume está a serviço de uma sociedade onde crianças já estejam prontas para lidar com os temas que aqui elenquei, ou seja, com as questões subliminares que o livro traz, talvez estejamos indo na direção certa. A definição que mais me contempla é de que é um livro para adultos que pode ser lido por crianças, sendo também um livro para crianças que pode ser lido por adultos. Enfim, também houve uma época em que eu achava que Os Simpsons era só um desenho animado.

Se partirmos do pressuposto de que ilustração ‘também é texto’, qual a relação que você estabelece entre esses dois elementos [em A história dos 3 pontinhos]?

Não diria isso. O texto deixa de ser texto para se transformar em ilustração. E penso que seja justamente essa a relação que se estabelece: os mesmos elementos que podem ser lidos no texto corrido do livro são seus personagens, digamos, durante as ilustrações. Logo, ali, já não são texto e, sim, grafismos. A história dos três pontinhos é ilustrada por uma combinação de símbolos gráficos retirados da pontuação e por onomatopeias, na intenção de gerar situações gráficas pertinentes e interessantes que dialogam, o tempo inteiro, com o texto. Porém, nada escrevem de fato. No lugar de fazê-lo, ilustram, percebe? São desenhos feitos com textos e não textos feitos com desenho.

Quais seriam as influências literárias e artísticas no seu trabalho como escritor?

Antes de mais nada, é preciso dizer que não sou um intelectual nem um acadêmico. Não sou uma pessoa que leu ou lê muito e tampouco alguém extremamente bem informado, me identifico com o arquétipo do vira-lata caramelo. Meu percurso é um percurso distraído e com muito pouca disciplina. Somente a inevitável, sou disciplinado como meu suor. Vamos pensar no desenho e na crítica social primeiro. Henfil pra mim é o Pelé daquele pessoal do Pasquim, outro gênio dessa turma é o Ziraldo. Consumi os dois em larga escala, na infância e na adolescência. Na mesma categoria, em outra geração, preciso falar do André Hippertt, gênio também. E fecharia com a Laerte, o Angeli e o Glauco, obrigatórios. Essa gente me ensinou a pensar vendo figurinha e isso tem um valor inestimável para um pensador preguiçoso, um crítico indolente. Já nas artes visuais, não dá pra não falar de dois caras, Basquiat e Keith Haring, e complementaria com o Banksy, acho que transito nessa frequência em matéria de pintura, principalmente artes plásticas, nunca fui da turma do conceito. Aí acabaria tendo que citar Andy Warhol, mesmo sem querer, não nutro nenhuma simpatia por ele nem por seu trabalho. Um ponto fora da curva é Jackson Pollock, onde também estive muito tempo. No Brasil, na mesma área, eu tenho influências inevitáveis de Ronald Duarte, Jorge Duarte, além, é claro, do Ronaldo Torquato e do Roberto Magalhães. Esse último no pensamento sobre a vida e sobre sua relação com a arte. Roberto é um gênio, dotado de uma humildade tão verdadeira que provoca um misto de admiração, raiva e inveja. É uma turma da pesada aqui do Rio. Entre os meus pares, citaria Lucas Chewie, dono de um traço primoroso, com quem fui premiado no Prêmio Vladimir Herzog com uma tirinha na edição de 2020. Nando Motta, que dispensa apresentações, atualmente um dos principais chargistas do país. Inclusive assina a orelha e a caricatura dessa edição de A história dos três pontinhos. E, com certeza, vou lembrar sempre de Marinho e Joana Cesar pelos trabalhos de grafismo urbano, que guardam a semelhança de irem do privado para o público e retornarem ao privado. Em Joana, talvez isso fique mais claro em seu trabalho de colagens feito a partir de fragmentos recolhidos na urbe. Por outro lado, sempre estava lendo alguma coisa, e se eu só pudesse citar um livro, seria Cartas a um jovem poeta, do Rilke. Mas dei uma passada em Machado de Assis, estive em Schopenhauer, Nietzsche, Descartes, Sêneca, Proudhon, Leo Huberman, George Orwell, Monteiro Lobato, Rubem Fonseca, Nelson Rodrigues, Leminski, Manoel de Barros, Adélia Prado, Carl Sagan, Einstein, Maurício de Souza, Borges, Saramago, Steve Jackson, Philip K. Dick, Evandro Mesquita, Rui Castro, João Máximo, Carlos Didier, Nelson Motta,  Níkos Kazantzákis, Danuza Leão, Bill.W, Casseta Popular, Planeta Diário, Kafka, Caros Amigos, Millôr Fernandes, Dora Kramer… isso é o que me vem à cabeça agora, certamente estive em mais lugares. Sempre numa relação de absorção e incorporação de conteúdo, sempre me apropriando, nunca decorando nada, não sou dessa turma da citação. Embora, é claro, algumas passagens tenham me marcado, de forma orgânica sempre. Minha relação com leitura e literatura é esse liquidificador desordenado que aqui apresento e isso retorna na maneira como escrevo e até agora não me incomodou. A vitamina segue consistente sem negar sua origem superficial, por estranho que seja. Acho que cabe citar também Tarantino, Coppola, Scorsese Spike Lee, Woody Allen, Spielberg, Padilha, Silvio Tendler, Fernando Meirelles, para a lista ficar curta. Não faço parte da turma do cinema iraniano. Atualmente sigo assistindo reincidentemente O Poderoso Chefão 2 e Tropa de Elite 2. Este último vi no cinema em 2010 e levei minha filha. Lembrando que não me identifico com fascista, não defendo a tortura, não compactuo com corrupção e odeio a PM do Rio. Enxergo no filme uma denúncia, quem enxerga apologia tem algum problema ideológico com o Padilha, é o que me parece. De uma forma geral esse formato blockbuster-cult me influenciou muito, há realmente uma diferença entre E.T e Manhattan?

Você falou de artistas consagrados, de escritores e filósofos os mais variados, de cinema. Mas existiria alguma relação entre música e a literatura que você produz?

Falar de influência e não falar de música, pra mim, é impossível. Mas seria bom tentar aproximar essa música que me influenciou no sentido da música que influencia a minha literatura e aí eu ficaria apenas com esses nomes: Noel Rosa, Chico Buarque, Aldir Blanc, Marcio Borges, Paulo César Pinheiro e Gustavo Black Alien. Dos seis, apenas um não dispensa apresentações e é justamente Gustavo que mais me influenciou nos últimos 25 anos. Acompanho seu trabalho desde 1996, ouvi absolutamente tudo que estava disponível, estive em diversos shows nos mais variados lugares. Black Alien é o Maradona do rap nacional, claramente um gênio, o que ele faz transcende o conceito de rap e diria até que vai além da poesia. É literatura cantada, muitas vezes quase uma prosa ritmada, um relato musical. Gustavo está presente não só na forma como eu escrevo mas, antes, na maneira como penso, como escolho meus assuntos, como traço a minha rota. Isso se apresenta na minha conformação de imagens também, há uma influência imagética, plástica, que surge a partir do trabalho musical dele, é pop porém não é fácil. O ritmo do meu último livro, Mu{L}tilado, lançado em 2019 pelo selo Mundo Contemporâneo, a prosa poética ali proposta é absolutamente influenciada pela flow (levada) do Gustavo. Só faltou falar da psicanálise e do Muhmmad Ali.

Como surge sua relação com a Zouck Editora?

A Vieira e Lent Casa Editorial encerrou suas atividades e recebi meu distrato pelo correio. Estava sem editora. Passei um tempo vendendo os livros que me couberam após o distrato pelas redes sociais e fiz uma doação de vulto da trilogia (algo como 400 exemplares) para a Escola Municipal Pedro Ernesto, na Lagoa. Não procurei outra editora de cara, estava mesmo triste com a situação. Um grande amigo e entusiasta do meu trabalho, o publicitário carioca radicado em São Paulo, Bogado Lins, a quem sou muito grato, me acenou com o contato do João Ricardo Xavier, da Editora Zouck, de Porto Alegre. Depois de algum tempo, escrevi um e-mail em que enviava os PDFs originais que Vieira e Lent Casa Editorial tinha disponibilizado após o distrato. Em duas semanas, Xavier me procurou pelo telefone e ali mesmo estava contratada, pela Editora Zouck, a Trilogia das entrelinhas. Esse mês saiu a pré-venda do primeiro título por ordem de lançamento, justamente A história dos três pontinhos.

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