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Trechos do livro “HQ”, de Claudio Sérgio Alves Teixeira

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Cláudio Sérgio Alves Teixeira – Nascido em 1974, cresceu na periferia de Guarulhos/SP. Leitor voraz desde criança, ao longo da vida oscilou entre o mundo real e o imaginário, buscando neste o alento para as vicissitudes daquele. Cursou Letras (1997) e foi professor de Língua Portuguesa e Literatura por quase duas décadas. Graduado em Direito (2007), atualmente exerce o cargo de Promotor de Justiça, o que lhe permite o contato com o melhor e o pior da espécie humana. Autor dos romances “Miragem” (2021) e “HQ” (2024).

Trechos do Livro:

“Maia, furiosa, estava também desconcertada; constrangida, sobretudo. Porém, aos poucos a fúria suplantou o desconcerto e o constrangimento. Com folga. Antes de prosseguir, devo deixar destacado meu assombro quando fiquei sabendo do affair mantido por Maia, uma mulher casada e apaixonada pelo marido, segundo depoimento uníssono de todos quantos conheciam o casal. Meu assombro, por certo, não se devia ao relacionamento em si; afinal, nas muitas décadas de amizade com Dimas, poucas foram as mulheres que resistiram ao seu charme malandro e selvagem. Meu pasmo decorria do fato de todos realçarem o amor de Maia pelo marido, o que confrontava com a existência de um caso extraconjugal. Eu iria, muito depois, entender a motivação dela — bem distante da simples luxúria —, mas não posso me antecipar agora. Aguardem e confiem. Prossigamos com o relato.

Naquele quarto de motel, a ira de Maia se derramava de seus olhos na forma de lágrimas e convulsionava os gestos das mãos e dos pés. Numa obsessão masoquista, ela recapitulava os desditosos eventos recentes. Na semana anterior, viajara a trabalho para participar de uma convenção em outro estado. Voltou um dia mais cedo, conforme combinado com o amante. Dessa forma, em vez de retornar para os braços musculosos do marido, foi recepcionada no aeroporto por Dimas, com quem passou a noite — e que noite! — num maldito quarto de motel, mesmo lugar onde terminou por ser largada, como se fosse umazinha qualquer, e de onde precisava sair por si só, de táxi ou a pé. E ainda pagando a estadia! Não haveria maior humilhação no mundo, com certeza. Pois bem, indignada ou não, os trajes de donzela desamparada não serviam nela, razão pela qual vestiu as roupas, apanhou sua mala e saiu resoluta do quarto com destino à recepção, diante da qual, de pé, pagou a conta sem conferir o valor e saiu daquele inferno sem olhar para trás e sem se importar com os transeuntes que a observavam despudoradamente.” (Págs. 39 e 40)

***

“Dimas e eu tínhamos estudado juntos na época do ensino médio, numa instituição particular de boa reputação na cidade, dotada de excelente estrutura que incluía até mesmo um campo de futebol com medidas oficiais, ladeado por uma arquibancada para cerca de oitocentas pessoas, uma excentricidade para os padrões atuais, sem dúvida. Um colégio assim era caro, óbvio. Eu nunca fui propriamente rico, mas vivia em condições bastante confortáveis, ao contrário do meu amigo Dimas, pobre feito Jó. Ele, porém, inteligente, carismático e excepcional atleta, encontrava portas abertas por onde andasse, e não foi surpresa quando ganhou uma bolsa de estudos para  requentar nosso colégio, onde eu o conheci e, sem qualquer esforço de parte a parte — apesar de eu ser um aluno reservado, se me permitem o uso de um eufemismo, enquanto ele era a popularidade em pessoa —, nos tornamos amigos inseparáveis.

Nós nos identificamos sem qualquer razão aparente e ultimamos por formar uma dupla bem pouco convencional na época, um extrovertido atleta negro e um contido japonês CDF, segundo a ótica limitante de quem nos via juntos. Confesso que, com a chegada dele, temi por Dimas naquele ambiente inamistoso de escola “classemedista”. Visivelmente pobre e um dos pouquíssimos negros no corpo discente, ele poderia

ser alvo de provocações, para dizer o mínimo. No entanto, ele superou todas as vicissitudes e se tornou um dos alunos mais populares da escola, além de o melhor jogador do time — pelo menos até a chegada de Karl, mas não é hora de falar dele ainda. Além disso, Dimas era o primeiro a fazer chacota a respeito de sua pobreza, minando por completo a possibilidade de piadas sem graça por parte dos alunos mais afoitos. Como se não bastasse, ele era muito bonito e sua precária condição financeira lhe dava ares românticos, a julgar pela quantidade de meninas com quem saiu, superando em muito os alunos brancos e bem-nascidos. De acordo com a visão ousadíssima de Violet (pronuncia-se “Vaiolet”, com “t apenas insinuado, quase mudo”, conforme ela própria ensinava), nossa jovem professora de inglês e francês da época, Dimas definitivamente tinha um “je ne sais quoi”, expressão não conhecida por nós na época, mas muito bem aplicável ao meu charmoso amigo. E aqui está o cerne da minha estultice. Conhecendo-o como eu o conhecia, deveria ter compreendido a verdade não contada por ele. Dimas não desdenhava da morte da filha, simplesmente não conseguia lidar com ela.” (Págs. 101 e 102)

***

“A frente fria chegou repentinamente. Além da garoa intermitente, uma brisa gelada penetrava nas roupas e forçava as pessoas a procurarem proteção extra nos cafés da cidade naquele final de tarde, reclamando do frio inesperado com a mesma ênfase dantes utilizada para lamentar o calor. Entretanto, longe desses lugares aconchegantes, a tremedeira de Bolão ao despertar tinha outra origem.

Recobrando a consciência aos poucos, ele buscava entender como tinha sido conduzido àquela situação atroz. Estava sentado em uma pesada cadeira de metal, com as mãos amarradas atrás do espaldar, descalço, a barra da calça dobrada até onde suas grossas canelas permitiam, e com os pés dentro de um grande balde de alumínio preenchido até altura dos calcanhares com água e gelo. Observando discretamente ao redor, pareceu-lhe identificar um galpão de fábrica abandonado, um local não reconhecido por ele. Apesar de o lugar ser extenso e de todo desocupado, o ambiente era opressivo, talvez por conta da pouca iluminação e excessiva poeira, mas muito mais provavelmente por alguma coisa ainda indefinível para ele, um vulto ou algo assim, de pé num canto afastado. “Fique frio, Bolão.” Dimas, de longe e sem ser visto, sorria. “Estava ansioso aguardando você acordar.”Meu amigo sempre foi um fã dos filmes de ação americanos e, sem dúvida, se inspirou neles para realizar sua apoteótica entrada em cena, com vistas a obter o melhor efeito dramático possível. Após esperar algum tempo, e percebendo o despertar de Bolão, sua ampla figura surgiu das sombras, passo lento, pernas abertas e bem apoiadas no chão, os braços semicurvados segurando um pesado instrumento junto ao corpo. Apesar da energia da apresentação, Bolão não era facilmente impressionável, não deu mostras de estar apavorado, como supusera meu amigo. Não obstante, um temor instintivo tomou conta de Dimas ante a aproximação de seu colega de tráfico — ou ex-colega, já não conseguia distinguir. Mais do que a impressionante marreta segurada por Dimas, assombrou-o a expressão no rosto deste. “Agora, você vai sair dos sonhos para cair no seu pior pesadelo.”Misericórdia! Dimas gostava de frases de efeito, mas passava dos limites. Qualquer outro ficaria constrangido ao proferir tal fala, mas ele nem se abalou com a breguice da oração previamente ensaiada. Bolão recuperou de imediato sua lucidez. Nada disse, porém; Continuou aguardando o desenrolar da situação.” (Págs. 211 e 212)

***

“Os olhos dela eram tranquilos, quase duros, bem diferentes dos das duas mulheres de trás; elas tremiam de medo. Dimas levou a mão esquerda bem devagar até o rosto da suposta grávida e gentilmente conferiu o pedaço de pano no ombro dela, o qual era usado para enxugar o abundante suor da testa. Dimas soltou o pano no chão e, de imediato, agarrou a mulher pelo pescoço, apertando-o com a pressão de uma morsa, até ela cessar aqueles silvos irritantes. As mulheres detrás da poltrona se encolheram, mas nada disseram. Os olhos da falsa gestante se tornaram injetados, o nariz se expandiu em busca de ar; ela levantou as duas mãos e as colocou no braço dele, mas sem forças para afastá-lo. Quando estava prestes a desmaiar, Dimas a soltou e aguardou respirar livremente até se recuperar. As duas mulheres atrás da poltrona se levantaram um pouco, esticando-se para conferir se a terceira estava bem. Dimas, então, levantou novamente a mão direita, ainda segurando a arma, e desferiu uma abrupta coronhada no rosto da mulher sentada, atingindo-a na parte superior do nariz, bem entre os olhos. O sangue jorrou fartamente dos orifícios nasais — não houve lesão mais grave, apesar do efeito visual, afinal a região é bastante sensível e propensa a sangramentos. As outras duas mulheres levaram as mãos ao próprio rosto, apalpando um ferimento inexistente.” (Pág. 257)

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