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Trechos do livro “La Margarita” de Alberto Lung

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Alberto Lung é escritor, antropólogo e pós-graduado em Escrita Criativa pelo Instituto Vera Cruz. Reconhecido como um dos primeiros vloggers do Brasil, ele mantém um canal no YouTube, Dayloggers, onde compartilha reflexões sobre filosofia e cotidiano. Seu romance de estreia, La Margarita, é uma obra autoetnográfica que explora questões sociais e familiares, inspirada na vida de sua mãe.

Trechos do livro:

Não me lembro de que ano era. O tempo no campo é medido em algo diferente de dias. Sabíamos em que estação estávamos pelo frio ou pelo calor, mas a maioria das vezes sabíamos que dia era porque íamos à missa aos domingos e o pastor falava da agenda da paróquia. Eu tenho certeza de que nasci em 5 de novembro de 1961, em Crucesitas Octava, departamento de Nogoyá, Argentina, 806 habitantes. Uma multidão. Também sei que me registraram com o nome de Margarita Lung, mas já faz um monte de invernos desde aquele dia. As festas de aniversário tampouco eram muito confiáveis para medir o tempo, já que participávamos todos de uma comemoração coletiva da igreja para as famílias mais pobres – e nós éramos pobres, mas sem usar a palavra, senão la Mamá Teresa teria um treco e cairia morta. De qualquer modo, não dava para parar e pensar muito porque sempre tínhamos algo a fazer, e quando o tempo começava a esfriar, era o momento de tosquiar as ovelhas. Minha responsabilidade era transformar tudo aquilo em fio de lã. Mi Papá Alberto sempre me escolhia porque eu costumava ser mais rápida que la Emérita e la Catalina. Elas eram gêmeas e um tanto mais velhas do que eu. Já la María, la Amanda e la Marta ainda tinham as mãos muito pequenas. El Hugo e el Eduardo tinham os afazeres que Mamá chamava de mais pesados. Mas a verdade é que ninguém tinha trabalhos leves, e eu fiquei puta da vida quando percebi que tudo o que os homens da casa faziam era pesado e tudo o que eu fazia era leve, não sabiam que o peso do trabalho leve um dia poderia me deixar com dores que só opioides domariam. Já el Carlitos se salvava por ser muito novo.

A máquina de fiar exigia um pouco de experiência e algo de preparação. Antes de começar eu xingava os hábitos das merdas das ovelhas que caminhavam sem parar pastando e se enchendo de abrolhos, uma erva daninha com frutos cheios de espinhos duros e muito afiados que perfuravam a pele das nossas mãos e pés quando corríamos descalços. Aos seis anos a pele das minhas mãos ainda era muito sensível, eu e minhas irmãs puxávamos os frutos um a um furando nossos dedos e, da metade para o final do trabalho, começávamos a sentir pequenos choques que escapavam até a espinha. Usávamos o único calçado que tínhamos, feito inteiramente de plástico, com pequenas ranhuras pelas quais se infiltravam as gotas de sereno geladas, fazendo as pontas dos dedos ficarem escurecidas como hematomas. Não dava para sentir nada, quase como se as extremidades já não estivessem mais ali. Isso era tudo o que menos gostava, mas era essencial para poder passar pela máquina de fiar. Funcionava deste jeito: o pé, num pedal, fazia a roda girar e começar a puxar a lã que se fixava no gancho da bobina principal. É difícil de explicar para alguém assim, só vendo para entender. Pode parecer simples, mas em dias com quatro graus negativos, um fio correndo pelas dobradiças dos dedos em alta velocidade ganha a dimensão de um estilete enferrujado. Quanto mais rápido você aperta o pedal, mais aumenta a velocidade do objeto cortante. Meu pai sempre dizia que me achava a mais rápida. E, bom. Eu. Eu não queria decepcionar ninguém, mesmo se isso significasse deixar um pouco do meu sangue no meio do novelo.

***

Papá andava pelo campo como se nada tivesse acontecido. Às vezes apoiava a mão nas costelas e soltava um som de desconforto, mas nada além disso. Ficou seis meses internado, e em um momento em que estávamos só nós dois perguntei se ele me deixaria ver a cicatriz. Sempre fui curiosa com as marcas carregadas no corpo. Ele levantou a camisa, sorriu e explicou como o costuraram com um fio preto e que as pontinhas que davam para ver eram os pontos, e que o cirurgião enfiou a mão no buraco com uma faca para cortar um pedaço do seu pulmão que estava doente. Perguntei porque tinha uma gosma amarela saindo em algumas partes, e ele disse que isso significava estar sarando e sempre que penso em Papá, mesmo hoje, aos meus cinquenta e sete, mesmo com todas as memórias ruins, eu o imagino como a grama rala que insiste em crescer entre duas placas de cimento.

No domingo, Mamá nos acordou bem cedo para ir à igreja. Vestíamos roupas que ela mesma costurava. Fazia isso muito bem. Os tecidos dos vestidos das meninas eram feitos de toalhas de mesa. Para os meninos, camisa e gravata. Se tirassem uma foto de todos nós nos domingos de manhã e mostrassem para alguém que não nos conhecia, nunca diriam que a pobreza havia batido na nossa porta assim que Mamá y Papá se casaram, antes de qualquer um de nós existir.

Fomos de charrete, todos juntos, os mais velhos nos acompanhavam caminhando. Entre os irmãos, não queríamos repetir o que aconteceu con la Petisa. Mesmo assim, o cavalo só conseguia marchar muito pouco à frente dos que caminhavam. Papá não tinha medo de castigar o coitado, e ninguém discutia com ele, vai que a bondade adquirida recentemente acabasse. A mais ou menos seiscentos metros da igreja, Mamá fez o que fazia sempre, pediu para parar a charrete em um terreno baldio, e terminamos o caminho andando. Ela não queria que ninguém a visse naquelas tábuas remendadas e pregos oxidados, muito menos enquanto vestia seus brincos de pérola, herdados de uma tia que morreu fazia tempo. Eu sempre me perguntei por que não os vendia, mas com ela o orgulho ganhava sempre da lógica.

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