Três irmãos retornam para casa de férias onde passaram sua infância acompanhados de suas famílias com a intenção de limpar o imóvel e colocá-la à venda. Mas enquanto a poeira é varrida e o lixo é levado para a caçamba, feridas emocionais de décadas atrás rapidamente preenchem a casa vazia.
Lançado pela Devir, A Casa, de Paco Roca, partilha do DNA de outra narrativa gráfica emocional do mesmo autor, Rugas (que ganha 2ª edição). Está intimamente ligada à família, às emoções que deixamos nos invadir, aos objetos que fazem parte do passado e, sobretudo, às memórias.
Temos em mãos o processo de partilha de uma casa após a morte do pai, seus filhos concordam em visitá-la e consertá-la, para colocá-la a venda. Uma reunião que vai desencadear em cada um as memórias de toda uma vida com a propriedade e, claro, com o pai.
Paco Roca (1969) homenageia as memórias que teve com seu pai e como enfrentou o luto na própria casa da família Martinez Roca que conserva; onde criou esta obra-prima. Destacou em uma entrevista ao jornal El País: ” Ao longo da minha vida tentei ser diferente, viver diferente dos outros, e cheguei em casa, comecei a consertar o jardim com minhas filhas lá, e de repente percebi: Acabei sendo igual ao meu pai ...”
A narrativa
A graphic novel é narrada em quatro atos; um episódio por irmão e um capítulo final com os três reunidos, é desenvolvida numa estrutura perfeita, que vai colocando detalhes, trazendo para seus leitores a relação entre todos os personagens como se estivéssemos assistindo realmente ao raio-X de uma família real. Parece que Roca colocou sua própria experiência no trabalho, já que certas conversas, certas situações, parecem tão íntimas quanto plausíveis. E, nós, leitores, se sentimos próximos, como se pudéssemos afirmar que éramos parte daquela família, testemunhas diretas de vidas que vêm à mente como nossas.
O cenário em que se constrói a HQ é repleto de saudades e lembranças de família, um álbum de fotos sem negativos. Uma narrativa que é como um festival de relações humanas em um ambiente de reminiscências e sentimentos, interagisse ao longo do tempo. De forma simples e autêntica, percorremos o ressentimento e as censuras, para realçar o traço de um pai que não conseguia passar os dias sem jardinagem ou sem trabalhar.
O enredo é perfeitamente melódico, que embora simples, goza de uma cadência suave e crescente, com cada informação acrescentando, tijolo após outro, até que se construa a casa por si próprio. Em seu ciclo de vida, A Casa vai nos levar às nossas memórias, fazendo que nos reconcilie com o resgate da história de cada um de nós. Sobre fatos que sentimos próximos, em paredes agora mudas por falta, onde descansa a passagem da infância à idade adulta.
A arte
A personalidade de cada um dos irmãos é cinzelada com precisão. São pessoas comuns, com certeza imitações de pessoas que já conhecemos.
As cores sustentam o humor, o ocre predomina, o sépia quase sempre acompanha a memória. Misturadas à cor do verão, ao pastel das estações quentes e à modesta paleta de inverno, as composições dos quadrinhos formam um todo facilmente reconhecível, mantendo o equilíbrio perfeito que sublinha o vaivém da memória. O diálogo ordenado e simples nos lembrará quem somos e de onde viemos.
Toda a narrativa é narrada em casa ou sobre a casa, o que nos permite observar sobre quais alicerces os três irmãos interagem, todos compõem diferentes estados de espírito, ao ritmo da história, proporcionando cativantes momentos. O caráter marcante do álbum possui a força universal da falta, a profundidade que é capaz de nos mergulhar em nossas próprias memórias com uma empatia brilhante. Cada página destaca arrependimentos e oportunidades perdidas e tudo é carregado com um elegante parêntese de tristeza e sorriso.
Apesar da sua aparência simples, A Casa ao falar da passagem do tempo, como muito das obras mais importantes da literatura, consegue transmitir toda uma série de sensações e desenvolver toda uma gama de reflexões em torno do conceito. Não para apenas em narrar a cronologia dos acontecimentos em torno da família, mas consegue explicar como esses acontecimentos marcam a vida de todos aqueles que neles viveram, conseguindo também uma visão caleidoscópica do mesmo acontecimento, pois agrega as perspectivas de até três gerações diferentes, o avô, o filho, o neto.
E ao mesmo tempo desenvolve o sentimento que cada uma dessas gerações passa, como eles vivenciam a passagem do tempo, da passagem das estações da vida e da chegada da morte. O autor trata de algo tão intenso e extenso como a passagem da vida sem cair em melodramas. Há muita ternura, por outro lado, nessa narrativa. E Roca fala profusamente da necessidade de desenvolver uma certa empatia como ser humano, aquela virtude de uns poucos de se colocarem no lugar do outro para serem menos condescendentes, para compreender melhor o que nos rodeia.
Portanto, não hesite, não se preocupe se após fechar o volume uma sensação ocorrer, como era a intenção do autor. Uma história em quadrinhos única que não o deixará indiferente. De uma forma estaremos ligando para nossos progenitores. De lágrimas garantidas, um dos quadrinhos do ano.
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