A coluna Olhares & Obersvações sempre aparece quando preciso comentar alguma coisa sobre esta arte da narrativa colaborativa que é o RPG. Recentemente, li um artigo de Malcom Sheppard, um dos principais escritores de Mago da White Wolf, sobre autenticidade nas mesas de jogo e sobre como é possível “jogar RPG errado”. Eu não seria tão radical de confirmar isto, pois acho que cada um deve jogar da maneira que mais lhe agrada. Eu acredito que em muitas circunstâncias, jogos mais leves e divertidos serão a melhor escolha para determinada noite, ainda que raramente eles se tornem muito marcantes para o meu próprio gosto. Ainda assim, seus pensamentos e vozes combinam muito sobre como eu penso a “autêntica” experiência de jogar RPG.
Interpretar um papel a fundo, não está limitado a profissão do ator. Todos nós, a nossa maneira, interpretamos diversos papéis e personagens diferentes ao longo do dia-a-dia, ainda que muitas vezes eles não sejam assim tão distintos do que como nos enxergamos. O RPG é uma plataforma especialmente boa para você expandir este conceito, efetivamente encarnar uma persona distinta, da maneira mais autêntica que você for capaz, sem roteiros e direções, um personagem totalmente seu.
Você está jogando RPG da maneira “correta” quando ao olhar para trás, você perceber que acumulou um monte de memórias e experiências reais de coisas que você nunca viveu com seu corpo físico. Eu diria que mais do que se divertir, esta é a função melhor executada e mais importante deste “jogo de interpretação de papéis”, viver intensamente um personagem que lhe marque. É claro que para atingir este grau de conexão com uma história ficcional, narrada a você, ela não pode seguir aquele padrão tradicional oferecido pela maioria dos livros, você deve oferecer experiências autenticas de traumas e superação, de marcas e cicatrizes.
A parte mais difícil na hora de tornar esta “mágica” em realidade é perceber nosso inevitável fracasso com experiências coletivas. Por mais que tenhamos a sensação em uma mesa de jogo de que todos estamos inseridos na mesma história, sabemos que isto também é a mais pura ficção. Cada descrição é absorvida e interpretada de forma completamente única por cada um dos jogadores da mesa. No momento aonde dois jogadores ou o narrador discordam de algum elemento descritivo ou de algum poder mal utilizado, esta ilusão de uma realidade coletiva é quebrada. A partir desse instante, o grupo começa a argumentar em busca de uma nova coesão para esta realidade “compartilhada socialmente”. Nestes casos, tudo se torna um argumento de poder, ou a velha regra de ouro prevalecerá, ou o narrador e os jogadores encontrarão um equilíbrio juntos.
No geral, o RPG parece ser baseado em diversas regras de poder, uma delas, que é a capacidade de dizer “não” parece ser a mais difícil de ser aplicada em determinados jogos. Tudo se baseia na dicotomia entre expectativa e realidade, muitos jogadores acreditam que por ser um hobby, uma “brincadeira” eles tem direito de fazer tudo á sua maneira. No entanto, se o seu objetivo como narrador é a autenticidade você deve lembrar que todo ser humano erra. Pessoas reais perdem, pessoas reais tem falhas e as vezes elas não alcançam seus objetivos. Isto não quer dizer que você deve usar o jogo como uma power trip sua em relação aos seus jogadores, mas significa que você deve aprender a dizer “não”.
Quando você diz “não”, ou deixa o jogador se dar mal naturalmente usando o sistema do jogo você quebra uma expectativa de poder, você traça um limite claro para o seu jogador. Isso é vital se você busca autenticidade, pois não existem catarses verdadeiras em um mundo onde você já é tudo o que você quer ou onde isso é facilmente alcançável. A verdadeira marca, assim como o verdadeiro aprendizado, vem do esforço, da dificuldade e uma história boa deve posar este tipo de questão de maneira realista. Não é o oponente que tem ser igualmente forte ao jogador, mas as fraquezas e fragilidades dos dois personagens devem ser desenvolvidas de modo que elas fiquem críveis e reais. Os limites e a mortalidade de ambos devem ser claros e estabelecidos.
Você sempre será forçado a escolher entre “fatos” e “expectativas” quando seu jogador propuser uma idéia de personagem ou uma ação que pareça incoerente ou impossível. Ainda que estas idéias não possuam os mesmos graus de detalhes e reflexões daquelas da vida real, elas também iniciam um exercício de barganha e negociação entre duas partes investidas em uma história. Esta é uma parte integral do processo de jogo e é muito importante que todo mundo participe dela de boa fé para que o resultado não seja nem a realização de todos os desejos do jogador nem uma obliteração de tudo por parte do mestre. É inclusive perfeitamente válido se expressar intensamente neste momento, já que isso mostra um bom grau de comprometimento e envolvimento emocional de ambas as partes.
A última questão relevante no que concerne a autenticidade de um jogo fala um pouco mais sobre esse ponto que acabo de levantar. O investimento emocional, isto é, o seu investimento emocional na experiência do RPG e especialmente no seu personagem. Todos os avisos em capas de livros, colocados lá para manter os responsáveis se sentindo seguros são na verdade uma farsa: você é o seu personagem, ele não existe fora de você e todas as suas emoções vem do que você sente.
Essa informação é boa e enriquecedora, ter sentimentos reais em uma mesa é o que separa o RPG de outros jogos de tabuleiro. É o que faz dele uma experiência capaz do transcendente e do epifânico. Aqui um pouco de teatro não faz mal, para ser um bom jogador de RPG, você não precisa seguir o método de Stanislavsky, apenas basta lembrar de usar as suas emoções ao interpretar. Seu personagem está triste, pense em algo que lhe deixa triste e sintonize esta emoção. Seu personagem está extasiado? Pense no nascimento de seu filho, em uma viagem de sonhos, basicamente faça a mesma coisa. Você sempre será o melhor exemplo de interpretação do seu personagem e não existe manual mais correto do que os seus próprios sentimentos e memórias.
O mesmo vale para os narradores, verdadeiro mimetizadores de emoções, interpretando dezenas de personagens por minuto. Ao narrador cabe um papel ainda mais difícil, você precisa conhecer os seus jogadores para construir histórias que os completem, retirando temas, motivos e situações das experiências de seus amigos, e não de seus personagens. Certamente esta técnica tem os seus riscos, pois alguns jogos podem ficar pesados demais para certos grupos. Nada mais gratificante do que quando dá certo, quando seus jogadores de Cthulhu realmente sentem aquele medo tomar conta de seus corpos, ou o apego a um personagem em uma cena é tão emocionante que o jogador chega a chorar. Isto certamente é algo difícil e raro, comigo mesmo ocorreu apenas uma vez, mas foi uma experiência de catarse apoteótica que sempre irei lembrar com carinho. Quanto mais tempo jogando com o mesmo grupo, mais fácil para o narrador buscar e alcançar estas cenas e momentos especiais.
Estas são apenas pequenas técnicas e comentários sobre esta busca quase incessante de uma autenticidade difícil de alcançar. Uma coisa que me tocou muito sobre a fala de Malcom foi seu apelo aos narradores. Que eles venham para uma sessão totalmente devotados ao espírito da compaixão, com um verdadeiro senso de amizade aos seus jogadores, e que isto lhe ajude a encontrar memórias fortes e profundas que sejam capazes de movê-los e surpreendê-los. Narre sempre com o coração!
Muito bom Felipe =]