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Olhares & Observações: Periodização no RPG

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Olá, bem vindos há mais um O&O.

Esta semana vou falar um pouco sobre um artigo que me chamou a atenção na blogoesfera de RPG, o texto em questão foi escrito pelo Danielfo do Pensotopia e lança mão da questão : “Seu jogo é medieval?”. O artigo imediatamente me chamou atenção pela minha condição de alguém formado em História, que sempre questionou muito esse tipo de categorização. Ainda sim, acredito que o texto do Dani, ainda que bem legal, tenha tocado em alguns pontos que não são exatamente os mais contundentes a esta discussão. Portanto recomendo a leitura prévia do texto no Pensotopia ao qual vou me referir diretamente por aqui.

Primeiramente existe um grande problema em dicotomizar ou se valer de períodos históricos como forma de classificação. A História cresceu muito como disciplina desde seu início e um tanto difícil ainda se valer destes atributos classificatórios e generalistas que atualmente nada dizem. Não temos como antepor algo em Medieval ou Antigo, até por que existiram várias antiguidades muito distintas assim como várias formas díspares de organização social e política durante o medievo.

O termo Medieval é bastante interessante na medida que ele era uma atribuição consciente de algumas pessoas daquele período. Havia em alguns a noção de que estavam vivendo o tempo médio (medium aetas), pois pensavam haver uma distinção do antigo (principalmente por causa da religião) e possuíam a certeza de que o tempo futuro iria ainda chegar, na hora do juízo final e da volta de seu suposto redentor.

Já na antiguidade clássica (por que precisamos escolher alguma a qual nos referir e arbitrariamente eu pego aqui o grupo mais representativo, isto é, os gregos) não havia qualquer tipo de noção quanto a ser antigo. No máximo eles entendiam que os feitos narrados por Homero e Hesíodo se encontravam em um passado ancestral. Ainda sim, é importante entender que estes homens não possuíam uma distinção linear precisa de tempo. Um dos exemplos mais brilhantes do pensamento de continuidade que existia entre os antigos e medievais nos é ilustrado por Reinhart Koselleck em seu “Futuro Passado”, onde o autor discute a lenta transformação do conceito de história no ocidente europeu e a inauguração de um novo regime de historicidade simultâneo ao surgimento da modernidade.

Resumindo a tese, Koselleck inicia seu texto chamando atenção para a longevidade da fórmula historia magistra vitae, cunhada por Cícero durante a antiguidade romana. Para esse autor, a história era antes de tudo uma escola da vida, um arsenal de experiências pedagógicas. De acordo com Koselleck, até o século XVIII esta expressão ainda era uma fonte inquestionável da vida humana e suas experiências, “… cujas histórias são instrumentos recorrentes apropriados para comprovar doutrinas morais, teológicas, jurídicas ou políticas” (p.45). Este conceito inicial de história (em alemão, Historie) era sempre usado no plural, para designar narrativas particulares, como a história da Guerra do Peloponeso, a história de Florença, a história da Igreja, assim como era capaz de ser representado por objetos como quadros (a tela de Artdolfer sobre Alexandre para Maximiliano é um exemplo de Historie). A função dessas narrativas era prover exemplos de vida a serem seguidos, ou seja, a história teria o papel de escola (p. 42), “na qual se podia aprender a ser sábio e prudente sem incorrer em grandes erros”. Assim, o velho topos historia magistra vitae era aplicável àquele ritmo histórico lento, onde os “exemplos do passado continuavam a ser proveitosos” (p. 43). Isso se devia ao fato de que até o renascimento o homem europeu não via uma descontinuidade entre o tempo dos antigos e o seu, ou seja, experiências vividas centenas de anos antes continuavam servindo como exemplos.

Não vou entrar aqui no âmago do livro, que é o surgimento do conceito moderno de história, para Koselleck a mais importante inovação conceitual da modernidade, mas basta entendermos que por mais distintas que fossem as sociedades antigas e medievais, elas não se pensavam em forma de passado contínuo.

Com isto em mente vamos voltar ao RPG e sua classificação como medieval. Para tal vou me valer primeiramente dos tópicos lançados pelo Pensotopia.

Politeísmo X Monoteísmo

Não me estenderei sobre o tema desta questão, já que já escrevi dois artigos bem grandinhos sobre a religião em jogos de RPG e como as mesmas costumam a ser incoerentes. Só gostaria de deixar claro que essa dicotomia não é tão simples. Haviam várias formas de se praticar o cristianismo durante a idade média, e mesmo no ocidentes ainda haviam outras religiões que conviviam com a mesma. Para ler melhor os meus argumentos sobre este ponto leiam o “Olhares e Observações” sobre religião, que estão divididos em I parte e II parte.

Guerreiros X Cavaleiros e Glória X Honra

Acho que esta é a sessão mais problemática, pois se baseia realmente numa concepção equivocada. Na antiguidade clássica o principal tipo de guerreiro era o Hoplita, ou o guerreiro cidadão. A guerra era travada tão somente na defesa de sua pólis e de seus co-cidadãos. Me parece que existe a falsa idéia, baseada tão somente em Homero de que o guerreiro antigo só buscava o mérito pessoal, o que é uma inverdade, isso nunca existiu, os Gregos e os Romanos inventaram o conceito do guerreiro cidadão, inventaram as falanges e o lutar lado a lado.

Mesmo se pensarmos nos dois clássicos de Homero devemos lembrar que havia uma coisa por si só que já impedia que seus heróis fossem estes “desbravadores individualistas preocupados em resolver seus próprios problemas”, todos eles eram da realeza. Agamênon, Menelau, Aquiles, Perseu, Odisseu, Teseu, Heitor, enfim, todos eles eram líderes de “reinos” e nunca poderiam estar lutando somente por si próprios

Acredito portanto que ao contrário do que foi dito era bem mais comum a existência de guerreiros mercenários na Europa do medievo, como os Condottieri na Itália. Se pensarmos bem, um dos maiores e mais famosos heróis do período medieval era um mercenário: El Cid.

É claro que também haviam ideais de cavalaria, mas eles eram bem mais “ideais” do que atitudes concretas.

Acho que o glória X honra entra na mesma categoria. Honra era tudo na antiguidade, a diferença era o que era considerado honrado. Assim como glória também era algo almejado em ambos os períodos, e seria bastante inocente pensar que não existia uma busca por glória e riqueza na maioria dos cruzados.

Amor e Sexo

Dentro desta categorização é fato que como um todo a sociedade antiga distinguia de forma nítida sexo sobre amor, e que na idade média nem tanto na medida que publicamente o sexo era enxergado como um pecado fora do casamento (o que não quer dizer que ele não fosse praticado o tempo todo).

O problema é que isso não implica em muita coisa em termos de responsabilidade, os antigos eram tão obrigados a casar quanto seus descendentes medievais, isso era mais do que uma questão de gosto, era um dever para com sua pólis.

Amor é outra questão bem relativa, e não temos como minimizá-la na antiguidade. Pensem em uma das histórias de amor mais famosas do mundo, Orfeu e Eurídice, ou mesmo em Homero, onde vemos relações importantes como Aquiles com Pátroclo ou Odisseu com  Penélope.

Grandes Impérios X Muitos Reinos

Certamente, na minha opinião, é na formação política e religiosa que estes jogos de RPG mais divergem das sociedades reais, mas também acho ruim colocar as características supracitadas como algo vinculado a um período. Vamos lá considerando tanto a história grega, quanto a Romana eles só se tornaram grandes impérios no final. Todo o auge do período clássico se deu em um momento onde cidades-estado lutavam e competiam umas com as outras, e ao mesmo tempo, também temos grandes impérios na idade média, como o de Carlos Magno e o Império Romano-Germânico como um todo, temos o império Bizantino, os gigantescos Califados que dominaram amplas extensões de terra até a península Ibérica e etc… Estes mesmos árabes são o maior problema ao “expansionismo” ocidental, por se tratarem em muitos sentidos de uma sociedade mais avançada, que produziu impérios gigantescos que reinavam da Índia à Espanha. O império Bizantino era expansionista até ter seu território tomado pelos árabes. Da mesma forma, boa parte dos povos germânicos que colonizaram a Europa no início da Idade Média como os Godos e os Vândalos também foram grandes expansionistas. Isso sem falar de Gengis Khan.

O problema aqui é que os jogos de Fantasia Medieval ignoram completamente coisas como o feudalismo, raramente vemos mundos que existem sob a norma de uma economia feudal, com escassas cidades, uma sociedade predominantemente servil, baseada em senhores praticamente livres da influência do Rei.

Acredito que as sociedades mostradas em jogos de RPG são quase sempre mais similares politicamente com o inicio da Idade Moderna. A maior parte das fantasias “medievais” possui Reis absolutistas, grandes cidades, comércio ativo, várias estradas, enfim, características não muito comuns no período medievo.

A grande verdade é a fantasia medieval sempre foi muito mais criada a partir de um imaginário dos tempos medievais e antigos do que realmente baseada em sua história. E ainda sim, desde Tolkien sua estrutura ainda é essencialmente modernista.

Eu tenho minhas próprias idéias de como deveria ser um cenário medieval e geralmente quando quero jogar um jogo nesse espírito, eu narro uma crônica que seja situada dentro das Cruzadas, da Reconquistas ou outras situações que aconteceram. Quando eu quero jogar fantasia, por mais coerente que eu busque que ela seja, eu tenho noção que minha principal inspiração não é um período histórico real, e sim, o delírio coletivo de nossa doce humanidade.

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10 Comentários

  • Então, temos jogado esse tempo todo "Fantasia Moderna", ou melhor "Fantasia Expedicionária" (se considerarmos que um truísmo das aventuras de D&D é a exploração de lugares distantes e situações exóticas, longe dos burgos de origem dos personagens)? hehehe, concordo.

  • Ótimo artigo! Essas sutis diferenças são gritantes apra alguem do campo de atuação ou os apaixonados, aogra para maioria nem se percebe.

    Por esse motivo que eu sempre divivo bem, jogos baseados na realidade e os fantasiados, onde não pre peocupo muito com o que aconteceu conosco, afinal o objetivo é essse mesmo fazer o que acho mais legal, mas sabedno que pode estar muito distante da historia do nosso mundo.

  • Excelente post, Felipe. Desde o início o RPG "medieval" aparece baseado muito mais num imaginário esterotipado da Idade Média do que em sua história propriamente dita. Não que isso torne a coisa menos divertida… o problema a meu ver é simplificar fatores que podem ser explorados com um grau de detalhe muito maior, deixando o jogo mais complexo, mais interessante. Esses detalhes quando explorados com maior riqueza pelos cenários de RPG fazem uma diferença gigantesca em termos de jogo, na minha opinião.

  • Isso! Viva a estratificação de classes! Viva a vassalagem e a couvéia! Camponês também é gente e Paladino não existe (no máximo, é algum susserano com um brasão engraçado, huahahaha).

  • Artigo muito bom. Tocando em pontos como a diferença de Susserania com o de Soberania dos Reis (que mudou da Idade Média para o Período Moderno). todavia, a sua aplicação do termo medievo está equivocada, ela não pode ser usada para expressar a toda Idade Média e sim para o período de Transição pós Caronigio que ocorreu entre a Alta Idade Média e a Baixa Idade Média.

    E Concordo com o comentário do Álvaro. Paladino (era só um titulo esquisito como Fidalgo).

    Para quem quiser um jogo mais realistas deve notar diferenças são maiores do que essas citadas, por exemplo existia uma perspectiva cultural especifica de cada época/lugar que delimitava (e delimitam, isso não mudou, faz parte da estrutura socio-cultural muito bem estudado pela Sociologia) os conceitos e (conforme defendido por várias correntes da Sociologia e da Antropologia) os sentimentos, portanto toda a compreensão de Amor e Fé que possuímos é invalida para se compreender outro período. Sentimentos Complexos são combinações de instintos básicos com conceitos de perspectiva cultural época/lugar que sofrem evolução histórica (assim como as idéias, ideais e os conceitos em si). Outro fator é a concepção de mudança dos mecanismos sociais, além das confusões levadas pelos revisisionismos (como por exemplo a falsa concepção da idéia que do “culto a deusa” que nunca existiu no passado – isso me incomoda muito no Requiem) e próprio mecanismo de reinterpretação e apanhado por aproximação (que fazemos e eles faziam também).

  • Mataste a pau, Velloso. É uma tolice sem tamanho tentar rotular qualquer período da história (exceto, é claro, para poder simplificar as coisas para crianças de escola), o que é muito bom, porque acredito que D&Derivados são, sim, fantasia medieval mesmo tendo aspectos muito diferentes. Até mesmo cenários que se propõem a simular o período histórico que poderia ser chamado de "medieval" (nem vou entrar no mérito da questão das várias idades medievais) respeitam todo o caldo cultural e religioso da época.

    Tem um filme chamado Arn: O Guerreiro Templário que se passa na Suécia medieval. Apesar do filme ser bem ruinzinho, é interessante ver a dicotomia das religiões e da cultura, e os ideais diferentes do que se vê no "mainstream histórico".

    Claro, nosso jogo de fantasia medieval costuma tender mais para a idade clássica por causa dos conceitos mais fortes que se aproximam dos D&Derivados, como os monstros e tudo mais. Mas realmente todos os conceitos antigos ainda estavam presentes no que se chama de medievo. Enfim, não tem como generalizar tanto, na fantasia ou na história.

    Bom ver vocês de volta ao RPG, pessoal!

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