Resenha de Lugares Misteriosos (DEVWW55302, 136 páginas, R$ 44,50)
Um homem ao longo de sua vida pode experimentar o horror diversas vezes: ele talvez se lembre vagamente das sombras e dos barulhos furtivos que se apinharam para vê-lo na noite em que dormiu sozinho pela primeira vez; ele talvez se lembre de quando acabou no almoxarifado empoeirado e mal-cheiroso da escola primária, cheio de caixas de papelão, alguns móveis estragados e uma tela grande, desbotada e vazia apoiada num canto; ele se lembra da noite em que tendo deixado sua mais nova namorada em casa, apressou o passo e chegou correndo em casa; ele certamente se lembra de ontem de manhã quando encontrou pouquíssimas pessoas no caminho para o trabalho. O que começa como um simples estranhamento logo pode se transformar em medo e talvez em horror, na medida em que a realidade como se conhece é colocada em dúvida num dado aspecto ou estilhaçada na sua totalidade. O horror surge no instante em que um menino se convence de que uma figura pintada simplesmente deixou o quadro de que fazia parte, assim como quando um jovem tem a certeza de estar sendo perseguido por alguma coisa que não consegue ver; nesses momentos, a certeza mais consistente é a menos convencional e a mais assustadora. Isso pode acontecer em qualquer lugar, um caráter misterioso pode envolver tanto os grandes quanto os pequenos acontecimentos e insinuar algo sinistro tanto num laboratório secreto quanto no matagal da vizinhança.
O mistério é sufocante no Mundo das Trevas, uma presença constante onde quer que se esteja. Lugares Misteriosos parte dessa premissa, enunciada n’O Mundo das Trevas – Livro de Regras do Sistema Storytelling, concentrando-se em explorar o caráter mais sutil, familiar e pessoal com que o mistério e o horror podem se apresentar. Sendo assim, os lugares misteriosos são bem mais do que configurações estéticas e narrativas consagradas, como os cemitérios, as casas assombradas, os hospitais e os sanatórios; eles são pequenas frestas através das quais se pode espiar certas verdades escondidas e que indicam a existência de uma realidade oculta, muito mais ampla e sinistra do que a aceita de costume. Tal realidade subjacente não se manifesta somente em lugares estranhos, distantes e exóticos, ela também insinua a sua presença em lugares comuns, familiares, pessoais e considerados seguros, promovendo experiências terríveis que transformam ruas silenciosas e almoxarifados empoeirados em lugares onde se aconchegam histórias trágicas e obscuras.
São apresentados a partir disso nove cenários que podem ser usados em histórias e crônicas, especialmente naquelas com personagens mortais, e que também podem auxiliar o leitor na elaboração dos seus próprios lugares misteriosos. Tendo esses objetivos, cada um dos cenários é descrito de maneira elegante e sistemática, buscando conciliar uma narrativa agradável e adequada com a utilidade do livro para a mesa de jogo. Cada um dos lugares descritos segue praticamente a mesma ordenação: 1) é determinado algum conceito para um dado lugar misterioso, definindo, por exemplo, a localização e a ideia que norteia o cenário; 2) é contada uma história do lugar, a qual se deve deter em delimitar um núcleo dramático que interagirá com os personagens ao invés de relatar minuciosamente os eventos ocorridos em torno do lugar misterioso desde a sua origem (história); 3) são definidos alguns testes e regras adequados a um dado cenário para que a mecânica de jogo contribua para o aprimoramento da narrativa (sistemas); 4) são dispostas algumas motivações que possam colocar os personagens em contato com o lugar misterioso (motivações); 5) são enumerados os acontecimentos que podem ocorrer na medida em que os personagens interagirem com a trama do cenário (fatos preliminares; fatos secundários – no caso de O açude); 6) são apresentadas algumas narrativas possíveis em torno do lugar misterioso, como uma história voltada para os conflitos pessoais, uma outra inclinada à investigação e uma última dedicada às ações contra os horrores do lugar (histórias); 7) e em alguns casos são sugeridos desfechos para a narrativa (desfecho). Lugares Misteriosos, através da repetição sucessiva dessa estrutura descritiva em cada um dos cenários, torna-se um repertório bastante manuseável de ideias para uma história ou crônica (e não um livro de aventuras-prontas para jogar), assim como um método para a elaboração de outros cenários.
Prólogo: Residentes
Russ é um homem recém-divorciado que há algum tempo se mudou para um lugarzinho quieto chamado Skyview Acres. Trabalhando como faxineiro na universidade, Russ acaba se deparando com uma estranha e fascinante equação escrita na lousa de uma sala e com a jovem e bonita Dra. Diane McKay. Naquele momento, Russ estaria fatalmente envolvido com entidades terríveis e inumanas.
Residentes é uma história curta na qual o mistério sutilmente corrói a familiaridade do cotidiano de Russ, ganhando força a cada novo acontecimento para finalmente revelar ao faxineiro algo terrível que até então era tateado pela respeitável ciência de acadêmicos desavisados. É uma narrativa apropriada para um livro que busca apresentar a sutileza e a familiaridade com que o horror pode se manifestar no dia-a-dia das pessoas e assim mudá-los definitivamente.
O Açude
Na pedreira abandonada existe um corpo d’água que as pessoas chamam de açude, em cujas águas plácidas e turvas alguns homens e mulheres estão dispostos a derramar o próprio sangue e pagar um preço para conseguir aquilo que desejam. O açude é ameaçado quando uma empresa de mineração toma posse da pedreira abandonada e começa a drenar o lugar prodigioso. O açude então passa a atender freneticamente aos anseios das pessoas que se vêem a beira da destruição devido as consequências dos seus próprios desejos.
O Açude está entre os melhores cenários descritos no livro. Ele pode ser facilmente adequado a muitas localidades do Mundo das Trevas, tornando-se mais familiar e próximo dos jogadores. O cenário é de simplicidade e coerência invejáveis, fiel à dialética entre os custos e os desejos que deveria caracterizar as narrativas ao redor do açude. A relação entre os custos e os desejos não é deixada única e exclusivamente para a interpretação de cada um dos jogadores, ela felizmente se torna bem mais palpável através de um conjunto de regras que disseca a constituição e o custo implícito de cada pedido. Na medida em que os desejos mais obscuros e involuntários de uma pessoa são concedidos, a narrativa aumenta progressivamente a sua tensão, fortalece a sensação de que caminha para um desastre iminente no qual se tornam explícitos o impasse moral, o conflito e o desespero de todos aqueles envolvidos com o açude. Faria, por fim, uma única sugestão a esse cenário, que seria mais interessante à investigação sobre o lugar que a história do açude fosse reconstituída a partir dos resultados dos personagens em testes de pesquisa, como no caso de A Universidade.
A Universidade
Quando um professor de antropologia descobre uma porção de símbolos curiosos escritos no subsolo da faculdade, revela-se um enigma que acaba reunindo alguns docentes, cuja curiosidade implacável libertaria algum tipo de consciência que se apossaria da universidade, tornando-se uma ameaça para qualquer um que vague pelo campus.
A Universidade é de fácil adequação à situação específica de cada mesa de jogo, tendo em vista a acessibilidade, ao menos narrativa, das universidades. É bastante adequado ao caráter investigativo do cenário que o mistério que envolve a universidade seja descoberto pelos personagens por meio da reunião de informações obtidas em pesquisas. Os poderes da universidade são minimamente esclarecidos e mensurados, o que permite com que a sua influência transcenda as descrições espaciais e emocionais e ganhe presença mecânica, transformando a universidade num antagonista pouco tangível e bastante ameaçador. A Universidade é um dos cenários em que a reunião dos personagens é muito simples e plausível, assim como a interação deles com a trama do lugar. Contudo, caso o narrador tenha em mãos personagens que são docentes, funcionários da universidade ou visitantes casuais, ele terá que criar algumas motivações, pois em A Universidade, embora seja um espaço bastante aberto a um público heterogêneo, são sugeridas motivações demasiadamente voltadas para os estudantes.
O Vale dos Índios Pantaneiros
No Condado de Hampton, na Carolina do Sul, existe um lugar em que a morte imita a vida, nos arredores de um vale pantanoso onde bonecos feitos de ossos, pele ressecada e ramagens perambulam sorrateiros. Há décadas que os Weiss deixaram a lavoura e construíram um crematório que ainda hoje atende às necessidades dos moradores das redondezas. Contudo, Clinton Weiss não joga ao fogo os corpos que lhe são entregues, ele os coloca sobre o balcão e trabalha com afinco para transformá-los em bonifrates, arremedos de vida que servem aos delírios dele e de sua mãe, Gladys Weiss.
Embora este cenário possa ser deslocado seguramente de acordo com a ambientação da história ou crônica de cada um e seja estranho e demente, O Vale dos Índios Pantaneiros apresenta problemas que sobrepujam suas qualidades. Os bonifrates, ainda que recebam grande atenção, são descritos de maneira confusa, ora apresentados como costuras de ossos e ramos, ora como cadáveres mumificados, ora como de estatura mediana, ora como de estatura diminuta, como se torna explícito nas ilustrações; embora vestir os bonifrates seja algo comum para os Weiss, não está devidamente esclarecido como isso se dá, como, por exemplo, Gladys Weiss traja os Brotinhos Bonitos, bonecos bem mais complexos do que a máscara na qual se transformou o Professor, e como ela se sente e se movimenta dentro desses bonecos. Além disso, as narrações nesse cenário são potencialmente dificultadas por um núcleo dramático muito fechado. A reclusão da família, somada a eficiência de Clinton Weiss em esconder as suas atividades e a timidez característica dos bonifrates são obstáculos para a maioria das motivações apresentadas, as quais pouco comoveriam os personagens. Por fim, embora sejam sugeridas histórias variantes nas quais os personagens são bonifrates, essas histórias não contam com considerações a respeito das adequações mecânicas e narrativas necessárias; além disso, tais histórias variantes são capazes de tornar o lugar misterioso em pano de fundo da narrativa. Caso o narrador se interesse por essa proposta, recomenda-se que se familiarize com Puppetland. Infelizmente, O Vale dos Índios Pantaneiros se preocupa mais em apresentar os bonifrates do que o lugar misterioso e as narrativas que podem se desenvolver em torno dele.
O Segredo da Aldeia
Ainda que o mundo esteja deteriorado, existem alguns lugares em que ele conserva a primitiva vivacidade e a pujança de sua juventude. Num lugar ermo e esquecido surgiu uma singela comunidade próxima a um complexo antiquíssimo de cavernas e que há séculos se beneficia da potência do mundo e esconde com cuidado esse segredo. As pessoas desse lugarejo sabem muito bem o que os demais homens sacrificariam para se apossar dessa benesse misteriosa.
O Segredo da Aldeia é também um cenário de fácil adequação ao ambiente de muitas narrativas, nas quais costumam existir lugares ermos, contudo, ainda que seja possível e plausível colocar o complexo de cavernas primordiais no subsolo de uma cidade qualquer, essa escolha exigirá um pouco mais do narrador. Assim como alguns outros cenários do livro, O Segredo da Aldeia é capaz de promover profundos dilemas morais e intelectuais, na medida em que os vícios e virtudes ganham proeminência e a origem do mistério das cavernas é conhecida nalguma medida. Destaca-se no sistema de regras dedicado ao cenário a apresentação dos poderes contidos nessas cavernas misteriosas, especialmente a sugestão de inversão da regra de ganho de Força de Vontade, bastante adequada à essência primitiva do lugar. Ressalta-se entre as virtudes do cenário a acessibilidade aos personagens que de modos plausíveis podem ser levados a interagir com a aldeia e o seu segredo. Contudo, é uma pena que a história desse lugar seja conhecida sem um esforço considerável de pesquisa, a qual, dentre outras coisas, talvez esclarecesse a natureza das consequências sobrenaturais aos quebrarem o juramento feito aos aldeões e contarem o segredo da aldeia, um recurso que ao mesmo tempo em que é útil é incoerente.
A Estátua de Alice Lacrimosa
Há muito que a estátua de Alice se ergue numa praça qualquer, tempo suficiente para que tudo ao seu redor se deteriorasse e o sacrifício da jovem Alice fosse esquecido. Quando uma pessoa se mata aos pés da estátua, ela começa a verter lágrimas e logo homens e mulheres se sentem inclinados a depositar diante dela as coisas mais diversas. A vida de todos passa a melhorar, as ruas ficam mais limpas e seguras, as empresas e os comércios prosperam, os doentes são curados e até mesmo a equipe esportiva da cidade obtém algumas vitórias. Quanto maior o sacrifício, maiores os benefícios; logo isso é compreendido pelas pessoas que passam a se empenhar mais e mais em conquistar a benevolência de Alice com presentes maiores.
A Estátua de Alice Lacrimosa engendra um dilema moral profundo, possível de se adequar a muitos dos ambientes narrados e ainda manter a sua intensidade. A história de Alice é obscura e os personagens irão conhecê-la na medida em que conseguirem distinguir as coisas lendárias das verdadeiras, o que felizmente não deverá ser uma tarefa fácil dado o desconhecimento vigente a respeito da estátua e a pouca importância disso para muitos afortunados. O sacrifício e as suas benesses não constituem apenas uma abstração característica do cenário, legada única e exclusivamente a interpretação e que se instala entre os personagens jogadores, ela se torna palpável para a mecânica de jogo e dificilmente ignorável.
O Residencial Geriátrico Hillcrest
Algumas vezes simples homens e mulheres podem se tornar tão pavorosos quanto quaisquer criaturas sobrenaturais, bastando estar disposto a conhecer os seus segredos mais íntimos e os seus desejos mais obscenos. Ao final da vida, muitos homens e mulheres acabam cheios de amargura e desespero, tementes à morte e ávidos pelos últimos momentos da vida; o Hillcrest está repleto dessas pessoas.
O Residencial Geriátrico Hillcrest é um dos dois cenários apresentados em que o sobrenatural não é intrínseco e constitutivo ao lugar (o outro é O Ferro-Velho). É bastante oportuno lembrar ao leitor que embora o Mundo das Trevas abrigue lugares sombrios e sobrenaturais, eles não são os únicos em que residem o mistério e o horror. Há lugares ordinários em que se pode ver claramente a realidade oculta e subjacente se esconder no coração dos homens. O residencial Hillcrest é um desses lugares, onde perscrutar as memórias e os desejos de seus moradores pode vir a ser uma experiência perturbadora. Todavia, ainda que o cenário tenha uma proposta valiosa, será um pouco difícil envolver um grupo de personagens com o lugar, dadas as motivações apresentadas e praticamente a inexistência de um núcleo dramático referente ao residencial geriátrico com o qual os personagens possam interagir. O Residencial Geriátrico Hillcrest é um esboço bastante promissor para uma narrativa, conta com um bom conceito e personagens interessantes, todavia carece de simplicidade e enfoque necessários para torná-lo mais do que uma porção de ideias e histórias variantes.
A Floresta Sussurrante
As pessoas costumam se perder e embora a maioria encontre um caminho de volta, algumas delas acabam desorientadas e desaparecem. Um homem pode se perder irreversivelmente, deixar os caminhos que lhe são conhecidos e abandonar os princípios que lhe são caros. Quando isso acontecer, a Floresta Sussurrante irá acolhê-lo.
A partir dessa ideia bastante clara e interessante, A Floresta Sussurrante é um cenário que pode ser muito facilmente adequado tanto aos ambientes de uma história ou crônica quanto aos diversos momentos dessas narrativas. Estar moralmente perdido pode ser tão comum no Mundo das Trevas quanto estar espacialmente desorientado. Isso pode acontecer em qualquer lugar e a qualquer momento. Quando a Floresta Sussurrante entra em cena, os impasses dramáticos dos personagens ganham proeminência e o conflito entre vício e virtude torna-se literalmente expresso no semblante de cada um deles; para sair desse lugar, tais dilemas devem ser resolvidos, pois a floresta é irredutível.
O Ferro-Velho
Os sonhos envelhecem e morrem rápido no cotidiano industrializado. Os aterros e ferros-velhos recebem o refugo das tentativas sucessivas de incontáveis homens e mulheres de preencher o vazio que os consome. Esses lugares preservam um aspecto abjeto da sociedade que ela deseja esconder, assim acabam sendo ignorados e tornam-se abrigos para inúmeras coisas estranhas e perigosas.
O Ferro-Velho é bastante semelhante ao O Residencial Geriátrico Hillcrest, compartilhando com ele praticamente as mesmas virtudes. O Ferro-Velho é mais do que um amontoado de entulho automotivo, nele estão empilhadas histórias e sonhos em avançada deterioração; esse é um conceito interessante e capaz de gerar uma história de forte apelo subjetivo, para o qual o sobrenatural não é uma necessidade. A realidade oculta e subjacente do Mundo das Trevas não precisa do sobrenatural para se fazer presente, ela pode se manifestar na perversão dos homens e no caráter inóspito de alguma localidade. O ferro-velho é um desses lugares, perigoso devido à selvageria dos animais e dos homens que abriga e do risco constante de infortúnios e acidentes. As regras e os testes apresentados transmitem esses perigos e transformam o ferro-velho num lugar desafiador para a ação dos personagens. Assim como O Residencial Geriátrico Hillcrest, O Ferro-Velho é um cenário capaz de engendrar histórias muito diversas, de modo que isso pode ser encarado como uma virtude ou como um problema. O Ferro-Velho, embora tenha um conceito bastante interessante, coloca-o de lado, deixando de desenvolver o cenário como uma espécie de cemitério do sonho americano, para apresentar alguns personagens pouco cativantes e motivações e histórias que não conseguem ser facilmente aproximadas. O Ferro-Velho, em suma, acaba sendo a combinação de uma boa ideia com um acabamento ruim.
O Quarto Vazio
Um quarto antiquado e misterioso vem e vai como quer (ou como quer alguma outra coisa) e aprisiona aqueles que deseja, tirando-lhes a liberdade por períodos cada vez mais longos, privando-lhes de água e comida e arrancando-lhes a vontade, a sanidade e até mesmo a humanidade.
O Quarto Vazio está entre os melhores cenários apresentados e talvez seja o mais conhecido entre eles. Constituído a partir da associação entre a impotência do cárcere e a iminência da morte, uma combinação já explorada, como, por exemplo, em O Cubo, O Quarto Vazio é capaz de gerar uma narração bastante intensa e enxuta. Os personagens podem ser facilmente colocados no quarto misterioso, estando eles procurando pelo recinto ou não, passando então a interagir com a história do lugar (excelente exemplo de um núcleo dramático simples e marcante) e a temer desesperadamente pelas suas próprias vidas. Cada vez que os personagens retornarem ao quarto, ficarão mais e mais tempo presos naquele lugar e constatarão que não estão apenas privados da liberdade, mas também apartados das provisões necessárias para a sobrevivência. Assim descobrirão que contam apenas uns com os outros num impasse de vida e morte. Diante disso, não são apresentados somente a indestrutibilidade do quarto e as consequências mecânicas da privação de alimento e água para os personagens, mas ainda são dedicadas ao narrador algumas ideias de como criar tensão num ambiente tão fechado. Estando em acordo com o caráter simples, enxuto e intenso do cenário, são sugeridas algumas poucas histórias que o envolvem, a maioria delas com um argumento que respeita as características do cenário, com exceção de uma única que transforma o quarto misterioso numa arena de vale-tudo.
Considerações finais
Lugares Misteriosos pode ser considerado um livro interessante e útil; em suma, bem escrito. Os cenários que ele contém são no geral coerentes com a sua premissa de explorar o caráter diminuto e familiar do horror no Mundo das Trevas. Cada um deles é uma oportunidade de espionar a realidade apavorante que se esconde na proximidade das pequenas coisas; cada um deles é uma oportunidade de presenciar tanto o horror insinuado pelas criaturas sobrenaturais quanto aquele engendrado pelos próprios homens. Tais cenários confirmam e exemplificam que o mistério e o horror podem se dar praticamente em qualquer lugar e diante de quaisquer pessoas: demonstram que ambos não estão presos a configurações estéticas e narrativas consagradas, mas que podem surgir de onde menos se espera. Os lugares descritos mostram e integram ideias, sistemas de regras, personagens e paisagens diversas (até mesmo pouco comuns, como no caso do residencial para idosos). Isso na sua maioria pode ser usado facilmente e provavelmente com bons resultados na mesa de jogo, devido a abrangência dos lugares e dos dramas contidos, as adequações mecânicas propostas e também a diversidade potencial de narrativas. Mas também pode, através da superação de clichês, estimular o olhar e a imaginação do leitor para que ele crie, a partir de arredores mais familiares, os seus próprios lugares misteriosos. E para que isso seja menos laborioso, a descrição de cada um desses lugares é feita de maneira ordenada e sistemática, de modo que essa ordenação seja reconhecível tanto quando os cenários forem empregados em histórias ou crônicas quanto quando o leitor se inspirar neles para elaborar as suas localidades. Lugares Misteriosos é, portanto, um livro bem escrito por ir além de si próprio, ou seja, na medida em que é um repositório de ambientes adequados à mesa de jogo e um método sugerido para a elaboração de narrativas acomodadas ao tom do Mundo das Trevas.
O Ferro-Velho, a Universidade e, claro, o Quarto Vazio são os melhores cenários do livro, em minha opinião.
Resenhista: :Bruno Galeano.