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Uma celebração à voz em Cantositor, disco de estreia de Rafa Noleto

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Rafa Noleto por Marcus Negrão
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O cantor maranhense lança o primeiro trabalho com composições próprias que abordam das experiência do amor à influência de sua musa Gal Costa 

Esse álbum foi gravado entre 2021 e 2022, mas foi gestado durante 20 anos de vida musical“, conta Rafa Noleto, cantor, antropólogo e “cantositor”. O termo, que dá nome ao álbum de estreia, surgiu a partir da necessidade de se entender como artista. “Apesar de compor, minha atividade musical principal é cantar. Eu penso e faço música com a perspectiva de um cantor. E isso aguçou uma autopercepção de que sou um “cantositor”, conta. Foi durante a pandemia de Covid-19 que percebeu a importância de mostrar esse seu lado. “Entendi que os sonhos precisam ser realizados sempre com urgência”, afirma. Assim, reuniu 14 canções novas e antigas – com sonoridades da MPB, da bossa nova, do samba rock e do bolero –  para dar vida ao disco lançado hoje, dia 14 de abril. Ouça aqui.

“Costumo dizer que ‘Cantositor’ é uma palavra que sempre existiu, mas que nunca foi inventada. Não fui eu quem criei a palavra, nem fui a primeira pessoa a utilizá-la. Mas formulei um conceito em torno dela e fiz disso uma obra artística”, afirma. A ideia em torno do que é invenção  a criação de um conceito –, foi inspirada no livro “A invenção da cultura”, do antropólogo Roy Wagner. “Esse livro foi revolucionário porque mostrou que os antropólogos inventam, textualmente e conceitualmente, coisas que já existem no plano concreto das relações sociais. Penso que tanto os antropólogos quanto os compositores são especialistas em inventar coisas que já existem. O amor, a raiva, a solidão e a alegria sempre existiram. Mas os compositores transformam essas experiências em obras de arte e dão novos significados”, pontua.

O ato de cantar Rafa aprendeu ouvindo Gal Costa, homenageada na faixa “Musa”. A cantora, que morreu em novembro de 2022, foi a sua primeira referência musical. “Que referências um menino gay na década de 1980, que sonhava em ser cantor, poderia ter?”, relembra o autor, que na vida adulta viria a se debruçar sobre a obra de Gal a partir do seu olhar de antropólogo ligado aos estudos de gênero e sexualidade. “Quando fiz a canção em 2008, a letra revelava minha expectativa de encontrá-la um dia. Hoje, após o seu falecimento, essa possibilidade de encontro ganhou um novo sentido”, conta Rafa, que conheceu Gal pessoalmente em 2010, quando teve oportunidade de entregar a ela sua pesquisa acadêmica. 

Com produção musical de Bruno Chaves em parceria com Rafa Noleto, o disco tem participações especiais do violinista Gustavo Otesbelgue, em “Mar Profundo”; do musicista Gabriel Redü na faixa “Lua”; e do guitarrista Gustavo Mustafé, em “Por todas as noites” e “Madrugada”.  

Faixa a faixa

Entardecendo abre o disco com inspirações da bossa nova e do samba rock, lançando luz para iniciar a narrativa de Cantositor com a suavidade do pôr do sol. A faixa trata dos encontros de fim de tarde, das expectativas que criamos com a chegada da noite e dos amores que nela adentram. Das inspirações musicais, utiliza as convenções harmônicas e melódicas desses gêneros musicais tão conectados à MPB. 

O álbum segue então com Noctívago, música em que o eu lírico – um cantor e compositor de sambas – busca seu amor perdido pela cidade. Ele reflete sobre as saudades sentidas e as buscas por novas relações. Usa o samba para expressar que lidar com a saudade é ter que compreender emocionalmente o tempo, e que o passado não volta. A faixa é livremente inspirada no mito de Orfeu e Eurídice, história que foi adaptada para o teatro e cinema brasileiros, e cuja trilha sonora é composta por canções clássicas de Tom Jobim, Vinícius de Moraes e Luiz Bonfá. 

Quando ele chega é a terceira faixa e narra uma história de amor entre dois homens. A narrativa é contada na perspectiva de um personagem que declara seu amor ao outro, expressando a felicidade que sente a cada reencontro do casal. A relação acontece nas madrugadas de um ambiente praieiro, nas areias das dunas, nas ondas calmas ou turbulentas dos mares, sob a luz da lua e das estrelas. É uma canção que fala das relações fluidas, abertas e das múltiplas possibilidades de amar e ser amado.

Delicadamente deixa a noite para trás, permitindo chegar um amanhecer lento e romântico que toma o espaço. Um blues arrastado, a faixa busca trazer a sensação de quando acordamos ao lado de quem amamos e do desejo de permanecer ali mais um pouco – juntos e sonolentos. A letra foi construída como uma espécie de antítese de “Estrada do Sol” (Tom Jobim/Dolores Duran). “Delicadamente aborda a necessidade de desacelerar a vida, aproveitar os bons momentos lentamente e dedicar mais tempo às pessoas que amamos”, aponta Rafa Noleto. 

Em Musa, o artista homenageia sua maior influência: Gal Costa. Ele conta que “na década de 1980, quando não se tinha uma cena musical LGBTQIA+ constituída como temos atualmente, que referências musicais um menino gay, que sonhava em ser cantor, poderia ter? Gal Costa era uma das referências possíveis. Esta canção, composta originalmente em 2008, é uma homenagem à Gal na perspectiva de um menino gay que a tem como sua maior referência musical. A música é uma declaração de amor que fiz para a Gal antes mesmo de eu tê-la conhecido pessoalmente. A Gal foi quem me ensinou a cantar e me fez entender que eu queria ser cantor.” Anos mais tarde, Rafa Noleto, que é também antropólogo ligado aos estudos de gênero e sexualidade, debruçou-se sobre a obra de Gal e chegou a conhecê-la  pessoalmente em 2010. Na ocasião, presenteou-a com sua primeira pesquisa acadêmica acerca de sua obra. “Depois desse primeiro encontro, tive oportunidade de encontrá-la pessoalmente algumas outras vezes. Ao compor ‘Musa’, estou falando sobre como a Gal mudou a minha vida musical e acadêmica. Então, de certa forma essa também é uma canção autobiográfica. A sonoridade dessa faixa é muito inspirada nos álbuns “FA-TAL” e “Recanto”, conclui.

Um dos singles que antecedeu o lançamento do disco é Mar Profundo, faixa que é uma declaração de amor, que fala sobre a necessidade de fazer renascer as relações de afeto, sobre recomeços. “A letra usa a água salgada do mar como metáfora, faz alusão ao derramamento de lágrimas, à limpeza do corpo e da alma pelo sal, aos ciclos de idas e vindas sugeridos pelas ondas do mar”, conta Rafa. A música conta com a participação especial do violonista Gustavo Otesbelgue e é a única faixa do álbum em que o violão foi utilizado no arranjo. “Embora as composições tenham sido feitas originalmente ao violão, o acompanhamento harmônico da maioria das faixas foi realizado com guitarras. Em Mar Profundo, optei por conservar o violão como principal instrumento harmônico porque é uma faixa que conta uma história que se passa num ambiente praieiro, traz imagens metafóricas do mar e fala do transbordamento de emoções. Por isso, convidei o Gustavo Otesbelgue para tocar na faixa, pois é um músico muito virtuoso, que saberia traduzir ao violão esse ambiente praieiro que eu queria trazer para a faixa. Porém, ainda que a faixa tenha essa proposta mais acústica, outro instrumento muito importante presente na faixa é o sintetizador, que foi tocado pelo Bruno Chaves, guitarrista e produtor musical que produziu o álbum junto comigo. Neste caso, o sintetizador foi usado para simular a brisa do mar, pontuando a faixa com sons que remetem aos ventos que levam e trazem emoções”. No álbum, Mar Profundo ganhou uma versão estendida, sendo a faixa 12 da tracklist.  

Na faixa sete, o álbum anoitece novamente com Lua, que tem participação de Gabriel Redü. “Ele tem uma linguagem muito inventiva no modo como produz música, trabalha de forma muito interessante com os timbres de guitarra e sintetizadores, e eu queria que essa faixa fosse uma espécie de canção de ninar contemporânea”, conta Rafa Noleto. “Lua é um acalanto, música feita para adormecer, embalar o sono e induzir os bons sonhos. A letra é cantada por alguém que pretende ninar um menino para fazê-lo dormir e sonhar durante uma noite escura. Na canção, a vida é iluminada pela luz da lua, que dissipa a escuridão, estanca o choro e acalma os corações. Pretende estimular nossa capacidade de sonhar, imaginar, criar mundos possíveis mesmo quando atravessamos momentos difíceis. Em sua letra, o menino que adormece e sonha somos todos nós.”

Cromática “é uma canção que faz uma ode à cor verde, tonalidade que, combinada com outras, pode causar confusão ótica em algumas pessoas. Além de uma letra com várias nuances de verde, a canção passeia por diversas tonalidades musicais, evitando estabilizar um tom que seja auditivamente percebido de imediato. Uma profusão de plantas, frutas tropicais e objetos verdes são mencionados para ilustrar a riqueza cromática da qual o mundo é composto. Com melodia dissonante e uma letra com trocadilhos e metáforas, a canção trata dos muitos enganos que podem ser induzidos por nossos sentidos como a visão e a audição. A letra revela o desejo de enxergar todas as nuances que a vida tem”, revela Rafa.

Com Ao quadrado, uma valsa eletrônica, o artista traz as reflexões de alguém que reflete sobre as diversas formas de amar e viver relacionamentos afetivos. “A música revela um personagem que só consegue expressar seus sentimentos a partir de metáforas matemáticas e formas geométricas. Diante das múltiplas formas atuais de viver uma relação de amor, a personagem da canção se percebe como alguém que ama de forma ‘quadrada'”, afirma Rafa Noleto. A canção estabelece um diálogo com “Aula de Matemática” (Tom Jobim/Marino Pinto). “A ideia foi elaborar uma ‘resposta’ em que a personagem, a quem a canção de Tom Jobim e Marino Pinto se dirige, resolve expor as suas condições para amar o eu lírico da clássica obra da Bossa Nova”, acrescenta.

Aquele que apenas canta é uma celebração ao cantar, à voz como instrumento. Último single a anteceder o lançamento do álbum, “a canção é feita por um artista que se percebe como um cantor que compõe e não um compositor que canta”, revela Rafa Noleto. “Você só canta ou toca algum instrumento?”. Segundo Rafa, esta é uma pergunta frequentemente feita às pessoas que cantam. “Mas o inverso raramente ocorre, pois tocar instrumentos é uma cobrança que, em geral, se faz aos cantores, mas cantar não é uma exigência que se faz normalmente aos instrumentistas”. O single, portanto, reflete sobre essa questão e homenageia a todas as pessoas que usam a voz como um instrumento de expressão musical. “É uma celebração à voz cantada, cuja letra em primeira pessoa pretende ser autobiográfica e, ao mesmo tempo, uma canção em que cantores possam, de alguma forma, ouvir a si mesmos, reconhecendo-se, em suas semelhanças e diferenças, como portadores de saberes musicais únicos”, diz o autor.

Madrugada, que traz ao disco uma sonoridade jazzística, narra a perspectiva de um personagem que fala sobre uma roda de choro que faz acordar toda a vizinhança. Na faixa, apresentam-se as linhas de guitarra de Gustavo Mustafé. “Ele é um guitarrista que tem muita brasilidade na sua forma de tocar e um trabalho super interessante no universo musical do Choro” , aponta Rafa Noleto. 

O guitarrista Gustavo Mustafé participa também de Por todas as noites, um bolero para dançar lentamente pelo universo dos sonhos. A música conta a história de um encontro que acontece todas as noites nos sonhos do personagem. “Será que sonhavas também como eu? Será que dormias? Será que vagavas? E quando sonhares também como eu, procures por mim, serei todo o teu”, canta o eu lírico da música.

A canção que fecha o álbum é a mesma que dá nome a ele. Cantositor é a música mais experimental do álbum. Consiste na fala de um personagem parcialmente ficcional, o alter ego de um professor que lê em voz alta um verbete que está redigindo na máquina de escrever. “É uma faixa irônica, que traz um personagem que debocha da própria definição transitória que escreveu sobre si mesmo, designando-se como um cantor que compõe e não um compositor que canta. É uma faixa que cria um conceito artístico em torno da palavra Cantositor, termo que já existia, mas que ainda não tinha sido inventado de um ponto de vista conceitual. A ideia de ‘invenção’ é livremente inspirada no livro ‘A invenção da cultura’, de Roy Wagner, no qual é possível perceber que os antropólogos inventam conceitualmente coisas que já existiam na vida concreta das pessoas. Cantositor é uma reflexão sobre como as coisas são formuladas e definidas conceitualmente a partir da experiência real das pessoas, que é preexistente à elaboração de qualquer conceito em termos acadêmicos”, conta o autor.

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