Alguns filmes conseguem condensar uma vida em 90 minutos. Outros narram apenas um ou dois dias importantes de uma vida, sem contudo deixarem de ser interessantes. É isso que acontece com “A História de Souleymane”: acompanhamos o personagem-título durante os dois dias que antecedem uma entrevista crucial para ele, que decidirá se ele pode permanecer na França.
Souleymane Sangaré (Abou Sangaré) é um imigrante da Guiné que está em processo de regularização de seu estado na França. Enquanto não obtém o asilo que procura, trabalha informalmente como entregador de comida, e para isso tem de alugar o perfil de um amigo num aplicativo. Outro gasto vem com a obtenção de documentos falsos e de uma falsa narrativa sobre seu passado como ativista, o que o teria obrigado a sair do país natal.
O título pode ser explicado de duas maneiras. Há a história de Souleymane, aquela inventada por terceiros, que ele tem de decorar para contar para a assistente social no dia da entrevista. E há a história de Souleymane, a real, rica e conturbada como a de todo imigrante que deseja apenas melhorar de vida. Ambas estão inseridas num ramo chamado História Oral, uma metodologia de pesquisa que produz sua própria fonte a partir de entrevistas. Na História Oral, assim como neste filme, há uma construção mútua de saberes, com pesquisador e pesquisado numa intensa troca.

As interações de Souleymane com os clientes são rápidas demais para gerar qualquer tipo de conexão humana. Enquanto isso é positivo algumas vezes, como quando a cliente recusa a comida porque a embalagem estava amassada, por outro lado é algo triste. Dentre os clientes se destaca Roger, um idoso solitário cujo filho pediu uma pizza para Souleymane entregar. Aqui me lembrei do filme nacional “O Voo do Anjo” (2024), sobre um entregador de comida que faz amizade com um cliente idoso, e um impacta a vida do outro.
A maioria do elenco foi escolhido nas locações, diretamente das ruas para as telas. O próprio protagonista, Abou Sangaré, é um imigrante cuja situação na França não está legalizada: mesmo há sete anos no país, e depois de três negativas de lhe darem o visto de residência, Sangaré permanece em situação complexa, mesmo com a expedição de um visto provisório de um ano de duração emitido em janeiro de 2025 graças ao sucesso do filme. O diretor Boris Lojkine já tem um novo projeto em desenvolvimento e, surpresa, vem ao Brasil filmá-lo em outubro. Sobre “A História de Souleymane”, Boris disse, para a revista Final Cut Magazine:
“Espero que o filme (A História de Souleymane), esclareça a difícil situação dos trabalhadores sem documentos e as duras realidades que eles enfrentam. É uma história sobre resiliência, a luta por dignidade e a busca por pertencimento. Quero que o público se identifique com a jornada de Souleymane e reflita sobre as questões sociais e políticas mais amplas em torno da imigração e do asilo. Em última análise, trata-se de reconhecer nossa humanidade compartilhada e as complexidades das escolhas morais em um sistema injusto.”

“A História de Souleymane” conquistou vários prêmios, incluindo quatro Cesars – o Oscar do cinema francês – e mais dois em Cannes, onde foi apresentado pela primeira vez: o de Melhor Ator para Abou Sangaré, o Prêmio do Júri e o troféu do júri de críticos da Fipresci, Federação Internacional de Críticos de Cinema. De curiosidades sobre a filmagem duas se destacam. A primeira é que não há trilha sonora, escolha para gerar uma experiência sensorial acompanhando as dificuldades de Souleymane por uma Paris agressiva e barulhenta. A segunda é que Sangaré nunca havia feito entregas de bicicleta antes do filme, e as cenas foram filmadas com operador de câmera também em cima de uma bicicleta, seguindo o protagonista.
Em 2023, contabilizavam-se mais de sete milhões de imigrantes na França, quase metade deles de origem africana. “A História de Souleymane” é a história de muitos.
NOTA 8 de 10