Um garotinho de 5 anos grava uma mensagem de pregação religiosa de madrugada com sua câmera. A imagem denuncia seu caráter datado.
Assim começa A Voz de Deus, vencedor do prêmio de melhor Roteiro no 14º Olhar de Cinema e definitivamente um dos filmes mais impressionantes que vi no Festival.
Dirigido por Miguel Antunes Ramos, o documentário acompanha, ao longo de vários anos, o dia a dia de dois pastores mirins em estágios diferentes de suas vidas e “carreiras”.
No primeiro terço do filme, somos apresentados a Daniel Pentecoste, que ali em meados de 2016 estava com mais ou menos 16 anos, trabalhava como caixa num supermercado, estava começando a namorar e ainda realizava seus sermões ocasionalmente.
O pai de Daniel, muito orgulhoso, fala do antigo sucesso de vendas dos DVDs gravados contendo pregações emblemáticas do filho.
Pouco a pouco vamos entendendo que há um contraste crescente entre as ideias dos dois.
Enquanto Daniel está resignado com sua “decadência” como pastor e demonstra interesse e curiosidade por um novo caminho, o pai vive na nostalgia do passado glorioso.

Para além de discordâncias pessoais, a camada da macropolítica vai aos poucos se instaurando e intensificando essas diferenças com a chegada das eleições presidenciais. Os colegas de Daniel sugerem que ele não gosta de Bolsonaro. Daniel parece não querer nem mentir nem desmentir, como se soubesse fazer parte de um território cuja maioria partilha determinados códigos e opiniões. Do outro lado, seu pai tem como principal atividade panfletar em prol do candidato.
É muito sedutora a ideia de ir narrando os fatos do filme em detalhes, pois cada cena é muito rica e cheia de nuances. E cada cena vai revelando novas camadas de contradição e ambiguidade das personagens.
Mas vou tentar me manter no resumo pra chegar logo às minhas reflexões.
Em um determinado momento, Daniel viaja pra São Paulo para participar de um encontro nacional de pastores mirins. Homenageado, ele divide o palco com João Vitor Ota, um garoto de mais ou menos 8 anos de idade na época, que estava se destacando como um grande sucesso no ramo.
A partir desses momento, a narrativa do filme assume uma estrutura paralela, intercambiando entre o dia a dia de Daniel e de João Vitor.
Apesar de exibir alguns trechos dos cultos e pregações, na maior parte do tempo o diretor escolhia os espaços internos das casas, comuns ao cotidiano e ao convívio familiar. O filme permanece na zona contrária do glamour e da espetacularização, mostrando os bastidores, a simplicidade e os tempos mortos. Tempos estes onde é possível empatizar com o conflito interno de Daniel em momentos de vulnerabilidade e insegurança, mas onde é também possível se assustar com a determinação cega de João Vitor.

Vai ficando clara a discrepância entre estes dois mundos.
De um lado, Daniel, cada vez mais distanciado da sua prática de pastor, em um momento de transição, amadurecimento e certa confusão, no qual vai tentando se encontrar.
Do outro, João, acompanhado da forte presença de sua família, está cada vez mais imerso no universo religioso, identificado e misturado com a persona do pastor mirim.
** Performance / visibilidade pública na infância
Outro grande contraste que engendra uma das reflexões mais interessantes do filme é em relação a diferença geracional.
Enquanto Daniel fazia parte de uma era analógica, na qual sua imagem e nome eram divulgados através de Fitas e DVDs numa finitude de cópias e alcance, João Vitor está inserido numa realidade digital de Youtube e Instagram, instâncias muito mais imediatistas, numa lógica simbiótica entre o dia a dia e a vida íntima.
No caso de Daniel, ainda era possível manter um hiato entre sua vida privada e profissional. Havia um tempo de diferença entre essas etapas, de “atuar” como pastor e de ser criança, adolescente, enfim.
Já João constituiu-se enquanto performer de si mesmo, dentro de uma lógica de seguidores, fãs, views e likes.
Isso fica claro também na diferença da relação que cada um estabelece com a câmera. Por um lado, Daniel sempre um pouco mais tímido e reservado, do outro, João parece nem notar a sua presença.
Hoje, Daniel nos conta que foi um tanto desconfortável ser filmado em seus ambientes e momentos de intimidade e banalidade. Ele estava acostumado com reportagens nas quais era requisitado, não enquanto pessoa comum, mas, tão somente, enquanto menino prodígio. Não entendia o conceito do documentário, a finalidade do projeto e o propósito dessas horas e horas de material “inútil”.
Em contrapartida, João Vitor está sempre muito à vontade, seja em casa, na academia ou até mesmo brigando com a mãe.
Ambos, cada qual com seu estilo e a partir das referências de seu tempo, empregam um estilo exagerado de falar e gesticular. Mas a performance de João parece mais exasperada e dramática, midiática e pasteurizado.
** Motivações e Escolhas Éticas/Estéticas
Numa conversa depois da exibição, o diretor fala que sua motivação surgiu em meados de 2015, quando viu reportagens sobre esse novo “fenômeno” dos pastores mirins. Em 2016, em meio a um momento político bastante instável, complicado e sombrio, que assistia também a presença cada vez mais atuante e crescente da bancada evangélica, Miguel resolveu arregaçar as mangas e ir para o mundo.
Criou um pacto consigo mesmo e com a equipe do filme para que estivessem o mais despidos possível de preconceitos e julgamentos, pois intuía que, para tentar entender, é preciso estar aberto para conhecer.
Miguel escolhe o estilo puramente observacional. Isso quer dizer que, mesmo que saibamos que há uma câmera e um olhar externo presente em todos os momentos, nunca ouvimos sua voz, não há uma narrativa explícita, nem cartelas explicativas. Pode-se inferir até mesmo uma ironia no título, A Voz de Deus, usado pelo crítico e cineasta Jean Claude Bernadet como um conceito no qual diretores impunham seus discursos, em um estilo documental muito comum no Brasil nos anos 60 e 70.
Um dos pontos mais interessantes são também as semelhanças entre os dois. Duas famílias de trabalhadores brasileiros, de classe média baixa, para as quais a igreja não se tornou fonte de riqueza. A venda dos DVDs sustentou por anos a família de Daniel, mas sempre de modo a suprir necessidades básicas. Já o pai de João usa o canal do filho para tentar vender roupas e outros produtos.
Há, decerto, uma forte camada crítica em relação à mercantilização e espetacularização da fé. Mas antes de qualquer coisa, há um desejo genuíno de entender. E de mostrar o lado humano daquilo que desconhecemos e, constantemente, julgamos.
O absurdo está posto nas entrelinhas. Pra mim, de modo gritante, para outros, talvez de modo sutil, à ponto de que me pergunto se ele será percebido por pessoas inseridas e identificadas com o universo evangélico. Isso me veio em mente quando entendi que a família de João se sente extremamente confortável e bem representada pelo filme. Não se sentiram nem ofendidos, nem manipulados.
Fiquei pensando bastante nesse dilema: como se manter ético e acolhedor para com suas personagens, respeitando seus espaços e escolhas, ao mesmo tempo em que posicionando-se criticamente?
Este é um filme de aproximação e de negociação. Miguel Antunes Ramos parte do princípio que o mundo em que vivemos não é um mundo monolítico. E mesmo este sendo um universo ao qual ele não tem aderência, é preciso reconhecê-lo, expondo suas contradições e problemáticas.
Termino fazendo um forte elogio à cena final, que consegue encapsular tantos sentimentos ambíguos em uma sequência quase epifânica na qual João Vitor Ota se mantem por vários minutos em cima de um touro mecânico. Só vendo pra entender….