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O medo e as memórias primitivas no espetáculo “Na boca do cão”

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O espetáculo Na Boca do Cão”, com direção de Bruce Gomlevsky, parte de uma história real, vivida por Gabriela Geluda, cantora lírica que, aos dois anos de idade, foi com o pai a uma padaria, onde havia um pastor alemão. Apesar de o pai ter perguntado ao padeiro se o cachorro mordia e o padeiro ter dito que não, sua memória é a de que no minuto seguinte sua cabeça estava dentro da boca do pastor alemão, com toda a escuridão que o interior de uma bocarra canina pode comportar, como acompanharemos no espetáculo. Segundo a cantora, na época, a reação que teve foi a de desaprender a gritar. Mais tarde, adulta e já cantora, dividiu sua história com o compositor de música contemporânea Sergio Roberto de Oliveira, que assina a música da montagem, dando origem ao espetáculo em forma de ópera de câmara contemporânea e cujo tema é o medo e a arte como transformadora de sofrimentos.

“Na boca do cão” não deixa de ser uma coleção de pequenas joias: a soprano/atriz Gabriela Geluda está absolutamente excelente; o libreto de Geraldo Carneiro também é ótimo, com nuances de humor, como a enumeração de filmes e produtos artísticos que a menina passou a gostar e a não gostar devido a suas referências ao significante ‘cão’ ou ‘cachorro’ presente nos títulos ou nos versos mais famosos, ou ainda como o trecho genial que faz referência à história do teatro ocidental, “mal sabia o padeiro que o cão/muda de humor,/morder ou não morder é uma questão”; a iluminação de Elisa Tandeta e o cenário de Fernando Mello da Costa endossam o lirismo da ópera, e, finalmente, uma menção mais do que especial deve ser feita aos músicos presentes no palco: Cristiano Alves/Cesar Bonan no clarinete/clarone, Ricardo Santoro/Murillo Gandine no violoncelo e Leo Sousa/Rodrigo Foti na percussão.

Entretanto, apesar de os elementos serem pequenas joias que têm sucesso em prender a atenção, pela beleza de sua conformação e pela acertadíssima direção de Gomlevsky, como explicar que o conjunto, em visão panorâmica, digamos assim, rende menos do que a forma como o tema é trabalhado consegue suportar? De fato, sabemos, com Freud e a psicanálise, que a elaboração de medos e traumas não se faz da noite pro dia, e que a repetição/perlaboração são aspectos fundamentais de qualquer transformação psíquica, que nunca se esgota, que nunca termina. Sim, sabemos disso. E também sabemos que não é apenas no ambiente tradicional do setting analítico que isso se faz, cabendo à arte importantes parcelas nessa função de transmutação e alquimia de si, talvez mais parcelas do que as que o ambiente de uma análise poderá ter.

No entanto, o espetáculo parece dedicar tempo demais a esse processo, focando exclusivamente nos terrores vividos pela criança, nas memórias que ela carrega e como as vive, em tudo o que foi sentido, e apesar da belíssima tradução desses medos especialmente para a música e a iluminação, que parece acompanhar de perto as sensações sugeridas pela história, acaba ficando excessiva a ênfase exclusiva na temática do medo e seus desdobramentos. Esse quase paradoxo que inclui a extrema beleza e sofisticação de aspectos variados do espetáculo, se vistos isoladamente, e certa morosidade e excesso de seu conjunto é algo difícil de explicar. Todavia, é preciso frisar: o excesso de foco nas filigranas da transmutação e na percepção do medo está bem longe de comprometer a proposta artística e a qualidade de “Na boca do cão”.

Confira serviço e ficha técnica aqui

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