Nos minutos iniciais de Casa de Antiguidades vemos, num ambiente todo branco e asséptico, uma figura vestindo um traje que serve ao mesmo tempo para apicultores e astronautas. Sua respiração é pesada, sua preocupação com a luva furada é sentida em seus movimentos pouco naturais. Em seguida, vemos a figura numa despensa, a câmera se aproximando conforme ele vasculha as caixas até achar o que queria: uma luva nova. Ele veste a luva e cerra o punho. Esta figura é Cristovam.
Cristovam (Antônio Pitanga) é chamado à sala do diretor da empresa Kainz, um alemão que se esforça pouco para se comunicar em português com seus funcionários. Cristovam ouve o velho discurso de “você é muito importante para a empresa, você é parte da família Kainz” para depois ouvir que terá seu salário reduzido. Descobrimos que a Kainz é uma fábrica de laticínios e que Cristovam vive sozinho, sem família, com um cachorro de três patas.
O diretor da Kainz não está interessado apenas na redução de custos: falando em alemão, discursa a favor da separação da região Sul e de São Paulo do resto do país, porque “aqui não há corrupção” e o Sul paga mais impostos mas o Norte é que é beneficiado por estes impostos. Frente ao autoritarismo do patrão, Cristovam nada tem a fazer, do mesmo modo que seu berrante não faz som algum que ameace a bandinha alemã tocando no boteco local.
A casa de Cristovam, chamada pelos meninos do local de casa abandonada – nenhuma relação com um podcast muito famoso atualmente -, é invadida por estes meninos, juventude sulista cuja diversão é andar armada pelos campos matando animaizinhos – e logo o cachorro de três pernas também se transforma em alvo.
Tudo se complica quando, numa noite de festejo, um menino fantasiado de pantera entra na casa de Cristovam, e o homem, crendo que é uma pantera negra que havia entrado, ataca o menino com uma espécie de mastro pontiagudo. Pela manhã, Cristovam enterra o corpo, troca suas botas de trabalho – antes brancas imaculadas, agora sujas de sangue – por botas de vaqueiro e vai seguir a vida. Ou pelo menos é essa sua intenção: Cristovam não consegue tirar o menino da cabeça, e tudo que vê o remete ao incidente.
Pelo nome Casa de Antiguidades, esperávamos uma exploração mais profunda da relação de Cristovam com sua casa. Não era preciso ser todo o filme sobre isso, mas seria interessante dar uma pincelada a mais no assunto. Em se tratando da conexão de um ambiente com um personagem, ninguém fez melhor que Jacques Tati em um dos meus filmes preferidos, Meu Tio, de 1958. O contraste entre a casa simples do tio, interpretado pelo próprio Tati, e a casa tecnológica ultramoderna do cunhado é um dos muitos pontos altos do filme, e bem poderia aqui ter inspirado nosso realizador brasileiro, João Paulo Miranda Maria.
O assunto separatista não vai além do discurso em alemão no Centro Cívico, mas é bom ter sido introduzido porque assim sabemos com que tipo de gente Cristovam está lidando. São os sulistas orgulhosos para quem todo mundo que não é do Sul é necessariamente nordestino e, portanto, inferior. São aqueles que acham ruim ser pegos no flagra fazendo coisa errada e ofendem os prejudicados por suas ações. São aqueles que acham certo pichar na parede da casa os dizeres “volta para casa, preto”.
Não podemos falar de Casa de Antiguidades sem destacar a atuação de Antônio Pitanga. Desde o começo, está nos gestos a tônica de sua performance. E é por isso mesmo que estranhamos quando ele se faz mais violento e verborrágico ao simplesmente descobrir um pôster com uma figura de um caubói por baixo da pintura da parede de sua casa. Felizmente, na tentativa de colocar na linha Jandira (Aline Marta Maia) e Jenifer (Ana Flavia Cavalcanti), é Cristovam que recebe uma lição.
O que o filme faz bem é criar uma atmosfera própria, estranha, quase bebendo do realismo mágico. É uma atmosfera que incomoda, que nos faz ficar do lado de Cristovam e sentir que, como ele, não pertencemos a este mundo que está sendo filmado. Mas essa atmosfera não leva a lugar algum – poderia, por exemplo, servir de pano de fundo para uma discussão sobre o quanto desse não-pertencimento de Cristovam no sul que quer se separar é causado pelo racismo – e, pior, quando Cristovam muda, muda para pior, perdendo a simpatia que tínhamos para com ele, até então. É um filme que se diz caipira, no sentido de rústico, mas que, nesse aspecto, acaba parecendo mal-acabado.
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