Atualmente, é difícil pensar em cinema fantástico sem pensar em monstros, bruxas, magos, extraterrestres e outros seres sobrenaturais. Mas o cinema fantástico em que o ordinário se torna extraordinário por uma pequena mudança existe e resiste, embora empalideça se comparado ao sci-fi popularizado por Hollywood e copiado no mundo inteiro. Um exemplo deste cinema fantástico raiz é o novo filme do veterano Helvécio Ratton, O Lodo.
Manfredo (Eduardo Moreira) anda cabisbaixo e meditabundo. Sem ânimo, marca uma consulta com o Dr Pink (Renato Parara), que propõe um mergulho profundo no lodaçal do passado de Manfredo. Ele rejeita o tratamento, voltando à sua rotina de ovos cozidos no café da manhã, longas horas trabalhando num escritório de seguros e encontros furtivos com a amante, Laura. Mas Dr Pink e sua secretária não se dão por vencidos e passam a perseguir – até mesmo em sonho! – o pobre Manfredo.
Há algo de muito buñueliano em O Lodo, começando pelo detalhe esculpido no teto do consultório do Dr Pink e mostrado à exaustão: algo que parece ter saído do dadaísmo. Também podemos dizer se tratar de uma fantasia kafkiana, devido à naturalizado do sobrenatural, além da origem literária do filme.
O Lodo é uma livre adaptação de um conto de mesmo nome de Murilo Rubião. “Livre adaptação” muito fiel ao original, podemos dizer, apesar da mudança de nome dos personagens. O conto curto é traduzido para as telas quase que completamente, com mudanças mínimas como os nomes já citados: o protagonista, por exemplo, vai de Galateu no conto para Manfredo no filme. Murilo Rubião (1916-1991) foi um dos principais representantes da literatura fantástica brasileira, apesar de ter publicado apenas 33 contos reunidos em sete livros.
Murilo Rubião era mineiro, e o filme O Lodo foi gravado em sua totalidade em Belo Horizonte, com elenco advindo do Grupo Galpão de teatro. O diretor Helvécio Ratton, também mineiro de Divinópolis, declarou sobre a adaptação:
O que mais me atraiu no conto foi a naturalidade com que Rubião insere o absurdo na vida dos personagens, à maneira de Kafka. No filme, há uma tensão crescente entre a narrativa realista e a sucessão de acontecimentos insólitos na vida do protagonista. Por um lado, tudo está em seu lugar, a vida parece seguir seu curso normal. Mas, por trás dessa normalidade aparente, irrompe o absurdo, com sua própria lógica, e nos desconcerta
(…)
Foi um desafio encontrar a linguagem adequada para contar no cinema essa história realista e absurda ao mesmo tempo. Tive ao meu lado uma equipe afinada, com muita gente talentosa e experiente, com quem já fiz outros filmes, e esse entrosamento fez muito bem a O LODO.”
Assim como no conto, no filme as personagens femininas não são bem desenvolvidas, sendo que o relacionamento de Manfredo com as várias mulheres que desfilam pela trama – a amante Laura, a novata do escritório Ana e a irmã que chega na metade da história – poderia ter sido mais explorado.
Com 11 filmes no currículo como diretor, Helvécio Ratton também co-assina o roteiro de O Lodo, filme fantástico que agrega muito ao cinema de gênero brasileiro, podendo servir de inspiração para, talvez, novas adaptações de Murilo Rubião para as telas.
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