Festival do Rio: Ano Bissexto

Festival do Rio: Ano Bissexto – AmbrosiaUm festival de cinema não é para se ver necessariamente bons filmes. É, antes, para se conhecer as tendências contemporâneas da arte de filmar, quais são as novas questões não apenas estéticas, mas igualmente políticas e éticas da cinematografia. Pois um filme é uma forma própria, ou imprópria, de se ver, um dispositivo de construção visual que ensina aos espectadores novas formas sociais do olhar.

Se assim é, Ano Bissexto, do australiano residente no México Michael Rowe, é uma das boas surpresas deste festival. Engajando-se numa estética radicalmente naturalista, com formatação periférica (antigamente se diria “terceiro-mundista”), o filme traz aos olhos dos espectadores, sem restrições, o cotidiano existencial e afetivamente miserável da periferia suburbana da cidade do México. Talvez seja em função desta sinceridade visual que o filme recebeu o prêmio de Júri Camera d’OR em Cannes neste ano.

Laura é uma jornalista de 25 anos que escreve “breves”, resumos de notícias, como free-lance para mídias. Mora num apartamento pobre e apertado, de paredes caiadas, mas com todos os eletrodomésticos disponíveis às classes emergentes. Tem em seu quarto o retrato de um homem, a quem devota especial ternura, que pensamos inicialmente ser seu marido e mais tarde descobrimos ser seu falecido pai. O filme se passa todo dentro deste estreito apartamento que tem aberta para o mundo exterior uma janela pela qual Laura acompanha a vida vizinha de um casal de jovens, cuja existência feliz e tranquila contrasta com sua solidão. Estamos em fevereiro de um ano bissexto e Laura passa seus dias escrevendo no lap-top, conversando ao telefone com a mãe e o irmão (que esporadicamente a visita), se alimentando com comida enlatada e recebendo noturnamente homens escolhidos ao acaso em suas saídas.

Festival do Rio: Ano Bissexto – AmbrosiaAno Bissexto foi considerado um dos filmes “quentes” deste festival. Uma das primeiras cenas que vemos é Laura trocando de roupa. Logo depois ela se masturba.  As cenas de sexo com os homens que “caça”  e traz ao seu apartamento são de um realismo sem disfarces.  Apesar disto, Ano Bissexto não é exatamente um filme erótico ou sensual, longe disto.

Michael Rowe optou neste filme por um visual absolutamente naturalista. Acompanhamos o cotidiano íntimo de Laura em seus pormenores: ela escrevendo e tirando meleca do nariz, urinando no vaso, trocando de roupa, falando ao telefone, comendo refeições congeladas,  vendo televisão, lendo na cama (Erich Frommer), tomando banho e se depilando e, é claro, copulando com homens. Este voyeurismo extremo que Rowe impõe aos espectadores é mais do que uma escolha estética por um naturalismo visual, é uma opção política: não há nenhum glamour, nenhuma estilização para embelezar a vida sensabor da moça. Mesmo a escolha da atriz (Monica del Carmen, em atuação autêntica e corajosa), uma gordinha de traços indígenas sem quaisquer encantos físicos, segue esta radical opção por cenários, corpos e visuais empobrecidos e sem fascínios estéticos.

Festival do Rio: Ano Bissexto – AmbrosiaComo os homens que a visitam, literalmente (ou visualmente) penetramos na intimidade de Laura que, embora escancarada, guarda seus mistérios e sua opacidade. Aos longos dos dias de fevereiro, que acompanhamos através de um calendário de parede que Laura diariamente preenche, vamos aos poucos, em meio aos silêncios lacônicos que se fazem, entrando em sua vida. Aparentemente, Laura procura nos homens que traz à casa a companhia afetiva para sua solidão. Ela segue a estratégia imperativa de sua libido: primeiro trepa e depois, com alguma sorte, é possível desenvolver algum relacionamento afetivo com seus parceiros ocasionais. Sorte que não chega, pois os homens apenas se satisfazem e, em seguida,  vão embora o que Laura aceita resignadamente, como uma sina. Até conhecer Arturo, que de maneira desastrada e pouco sutil, é o único que lhe pergunta algo e demonstra alguma curiosidade sobre sua história que, Laura se recusa, no entanto, a fornecer. Mas Arturo é também um personagem infeliz e miserável que para se sentir viril vai simular uma patética e anacrônica sexualidade machista e violenta.

A agressividade sexual de Arturo encontrará na passividade erótica de Laura um complemento correspondente e o casal irá desenvolver um relacionamento sado-masoquista, em moldes periféricos,  que significará para ambos um grau mínimo de afeto mútuo. O sexo sado-masoquista se tornará assim para o casal desesperançado um jogo de vida que trará certo sentido às suas existências, mas que caminhará por vias cada vez mais “sufocantes” até que o pólo aparentemente mais frágil proponha um lance decisivo e sem retorno…

Festival do Rio: Ano Bissexto – AmbrosiaO voyeurismo periférico, empobrecido e naturalista proposto pelo diretor Rowe lança mão menos de um apelo erótico aos espectadores no cinema do que de uma reflexão distanciada: o sexo seco e “deserotizado” não serve como instrumento de aliciamento estético ou de empatia, mas coloca em questão os limites da intimidade e da vida privada na contemporaneidade da mídia espetacular. Em tempos de crescente privatização da coisa pública, das invasões de privacidade, dos bigbrothers televisivos, da pornografia audiovisual generalizada e das webcams intrusivas, ainda faz sentido em se falar de intimidade? Talvez a intimidade não seja mais aquela zona barrada à visualidade óptica, mas tenha um caráter mais abstrato e ético, como aquilo que resiste ao desvendamento completo, como uma margem de sombra, um resíduo de opacidade que não se desfaz na compulsão pela exposição midiática contemporânea. Pois, apesar da devassa de sua vida cotidiana, permanecemos ao final ainda ignorando as motivações, a história e o destino de Laura. Talvez porque a intimidade não seja ainda interioridade e porque entre estas duas zonas há sempre a misteriosa, espessa e obscura realidade do corpo e de sua carne.

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