Entrevistei o poeta e escritor Igor Dias que lançou no mês passado Dinamarca, livro de contos lançado pela Editora Oito e meio, confira abaixo.
Se você pudesse unir num texto do Facebook os signos ortográficos que você põe no conto “Ortografia e sexualidade”, o que diria para os que continuam apregoando as revanches de gêneros no face, cada sinal com as aspas, os pontos e vírgulas, e dois pontos, a vírgula e o ponto final?
I.D. “Ortografia e sexualidade” é um conto que apresenta essas tensões de gênero, que são muito sérias, de uma forma bastante despojada. Ao mostrar que cada sinal de pontuação (ponto, dois pontos, vírgula, etc), possui uma marcação de gênero (“O travessão é masculino, e o ponto final também.”, diz a frase que abre o conto), é possível desconstruir um pouco essa dualidade estrita dos gêneros que a sociedade ainda hoje carrega. É interessante notar que essas tensões de gênero aparecem também no conto “O bundudinho” e, de forma um pouco mais sutil, nos contos “Dinamarca” e “Mariana”. Agora, tentando responder a esta pergunta-desafio de forma mais direta e, considerando que a literatura é algo que reverbera a realidade, imagino uma grande massa de signos gráficos em fila, como numa marcha ou passeata, colocando-se ativamente numa postura em prol dessa diversidade que “Ortografia e sexualidade” defende. Neste caso, o que deve ser dito àqueles que apregoam as revanches de gênero é: “.;$/!@£#.,;~\”
O texto “Dinamarca”, o título do livro e a referência à capital da Dinamarca têm um leve e sutil adendo ao relacionamento dos jovens. Por que resolveu colocar este título para seu livro?
I.D. Muita gente me pergunta porque o título do conto é “Dinamarca”, uma vez que a história não se passa lá. Acho curioso como a menção ao país Dinamarca é apenas uma breve alusão, um elemento pequeno dentro do texto, mas que ganha força para se tornar o título do conto, e posteriormente do livro. (“Eu poderia ter ido á farmácia pra você, mas fiquei fazendo as cruzadinhas na sala. Gastei uns três minutos pensando na capital da Dinamarca. Mas logo vieram o G e depois o P e quando veio o C, que era a primeira letra da palavra, eu, pá, matei.”). Isto ocorre porque o livro todo, nos 50 contos que o compõem, apresenta um caráter muito diverso. Há contos de dez páginas, de meia página, crônicas, cartas, quase-poemas, etc. Imagine você que lhe seja dado o desafio de dar um título para a sua vida. Talvez, depois de muito pensar na sua formação acadêmica, nos seus hobbies, nos seus amigos, na sua família, o que lhe ficasse mesmo como definição fosse um cheiro que você sentiu numa terça-feira cinzenta na adolescência ou a lembrança de uma ida ao zoológico. Escolher “Dinamarca” como título do livro é aceitar esse desafio e assumir que, tal como a juventude dos personagens do conto, imersos em febres, delírios, jogos e lembranças, só o que é fugaz permanece.
Queria que você me falasse da ótima construção imagética do conto “Vênus sobre a terra, urubus sobre os homens”. Como surgiram as imagens tão fortes e apropriadas para a narração?
I.D. Esse conto foi originalmente escrito para a coletânea “É assim que o mundo acaba” (Ed. Oito e Meio, 2012), onde foi inicialmente publicado. A ideia era mesmo escrever sobre um cenário distópico de fim de mundo. A primeira ideia que tive foi a de Vênus caindo sobre a Terra. A partir dessa ideia inicial, tentei deixar minha mente o mais livre possível para que fluíssem as ideias sobre como se daria esse fim de mundo. O que veio em seguida foi a ideia de que os homens se esconderiam debaixo da superfície. (“Ganhará força a concepção de que se os homens puderem se deslocar para o lado de dentro da superfície terrestre, o campo magnético-gravitacional que rege as relações entre Terra e Vênus se distenderá de forma que os planetas se afastem, em vez de se aproximarem. Os seres humanos, ávidos pela perpetuação da vida e da espécie, construirão engenhos gigantescos para se manterem protegidos, escarafuncharão a terra em busca de abrigos.”). A partir daí, ideias ainda mais loucas foram se desenvolvendo. Esse conto foi escrito de uma só vez, durante uma noite. É claro que alguns dias após escrito, fui olhá-lo criticamente, tentando perceber onde eu poderia melhorar as descrições, que coisas deveria excluir da narrativa, etc. Esse conto, que é uma grande viagem, está muito imbuído de uma das premissas do realismo fantástico, que é a de sustentar a verossimilhança a partir de um único ato inverossímil, neste caso, a ideia de que Vênus cairia sobre a Terra. Essa estrutura narrativa remete ao conto “Carta a uma senhorita em Paris“, de Júlio Cortázar, uma de minhas maiores influências literárias.
A Gaivota, conto que abre o livro é uma interessante pesquisa sobre a arte do encontro, do conhecer o outro, mas há vários pontos na narração de linhas abertas no afetivo ou de (dês)embaraços poéticos. Fale um pouco deste conto.
“A Gaivota” não abre o livro por acaso. Ao expor o encontro dos protagonistas, este conto acaba por promover também o encontro do leitor com “Dinamarca”. Minha grande motivação ao escrever esse conto era tentar captar as mais variadas nuances que acontecem em frações de segundo durante o momento do encontro. Essas nuances são cheiros, sons, tráfego, mas sobretudo, tensões. O encontro é basicamente um jogo, e é sobre esse jogo que “A Gaivota” discorre: “Eu tinha que fazer alguma coisa, rápido. Alguma coisa que, ao mesmo tempo em que não te encurralasse, deixasse transparecer que eu tinha entendido o seu truque, o seu jogo sujo, e que, por mais que não fosse a tão fatídica e previsível sinuca de bico, fosse uma outra jogada, nova, que abrisse o jogo do tabuleiro de xadrez pra que pudéssemos jogar com classe e com liberdade de movimentos, sendo cada um de nós responsável por cada jogada, por cada palavra, cada lance, cada passo em falso.” Esse conto tem uma cadência bastante poética, ao mesmo tempo que apresenta uma narrativa linear na maneira de contar uma história. Esta união de linearidade e lirismo certamente contribuiu para que “A Gaivota” tenha sido agraciado com Menção Honrosa no tradicional Concurso de Contos Paulo Leminski, em 2014, figurando entre os dez primeiros de uma listagem com 880 inscritos.
Comente!