Quatro perguntas para o poeta Marcelo Ariel

Nascido em Santos (1968), o poeta Marcelo Ariel vive entre Cubatão e São Paulo. Autor dos livros Tratado dos Anjos Afogados (editora Letra Selvagem), Retornaremos das cinzas para sonhar com o silêncio, Com o Daimon no Contrafluxo (ambos pela Editora patuá) A névoa dentro da nuvem (Editora Lumme) entre outros. Em 2012 gravou o disco Scherzo Rajada- contra o nazismo psíquico (Spoken Word). Fizemos quatro perguntas ao escritor. Confira abaixo:

1-) Teus poemas são atravessados por sucessivas linhas de pensamento e cognição sobre o real onde na primeira seção você parte de nomes de filósofos ou universos musicais para um início de contextualização do poema que se inicia premissando um  forte cunho reflexivo. Como você os construiu partindo desta noção híbrida de poética?

Meu processo é a evocação de duas potências do existir para através delas compor um ‘sair da frente do poema para que ele aconteça’. Uma é a mestiçagem que se aproxima como ideia do hibridismo, a mestiçagem é o que podemos chamar de potência da mistura e que alguns pensadores chamam de ‘metafísica da mistura’. Prefiro chamar de potência já que  se trata de uma fenomenologia manifesta do próprio mundo e não apenas de um devir, como digo sempre, é o mundo quem escreve os poemas. Isto pode soar como uma crença mística mas se trata de uma agudização da percepção da potência da mistura.
Os poemas são emanações do pensamento do mundo em atrito com nossa província do eu, estamos como que acuados pela graça e pela imanência em todos os sentidos, mas sem a abertura dentro da linguagem provocada pelos sonhos ou pelo poema em sua perspectiva de comunicação com essa abertura. Você sabe que os transes são aberturas para a alteridade absoluta do mundo. Podemos até falar no processo de acesso ao poema como um ‘ transe mestiço ‘, um transe misturado e transparente como certos “semissonhos”, e isto  talvez se aproxime vagamente  da noção do devaneio de Bachelard. Ao invés de responder à sua pergunta , estou tentando problematizá-la.
A outra potência que procuro evocar é obviamente a potência do surto, a dimensão surtológica que é de onde vêm as noções mais exatas do ser, como energia. O poema pode muito bem ser uma irradiação da epistemologia do surto, existe uma diferenciação entre o surto e o transe. é claro. São como ‘primos ‘ do poema, prontos para incendiar as províncias do eu.
Se usamos o eu em um poema, é para diminuir e até anular a força destas duas potências, a não ser que o ente cultive uma espécie de eu mestiço, de eu nômade, que é ideal, porque o poeta não deve abdicar de viver no mundo, de  comprar pão. Ele compra o pão e usa o papel transparente  que embrulha o pão para escrever seu poema e também pode aprender a fazer o pão. Em tudo o que digo não há uma negação do mundo, porque o mundo não está em oposição ao poema, é o mundo quem escreve o poema e não o poeta.

2-) Fiquei encantado com seus poemas-aforismos! Vi uma intensidade de latência do dito e não dito impressionante. São quase cápsulas espaciais abertas ao espaço/universo sideral onde há uma concentração de energia – ideia muito forte se expressado com uma riqueza e contenção de linguagem muito interessante. Fale-me sobre isso?

Sim, o tensionamento do poema, a meu ver , leva fatalmente ao aforismo, e também o vejo como uma ponte que liga o poema e o ensaio filosófico. O aforismo é resultado de um pensamento híbrido, de uma tentativa de aproximar os modos do poema dos modos do ensaio filosófico. Ligam-se profundamente mas de modo sutil ao haiku. Da tentativa fracassada de construir haikus nasceram estes  aforismos. Há até algo curioso em relação ao nascimento desta seção do livro. Estava no Cemitério da Consolação passeando com uma amiga e vi um pássaro pousado no jazigo de uma família chamada Potestade. Existem metáforas escondidas em tudo, a realidade fala por metáforas.
Quatro perguntas para o poeta Marcelo Ariel – Ambrosia

3-) Queria que você falasse de uma forma de agenciar as fronteiras tanto geográficas como do pensamento. Sua reflexão nunca é estanque. Você procura zonas de aproximação para o debate e para a troca sendo que seus campos de passagem de um tema a outro são bastante elucidativos para recepção do leitor. Como é este deslocamento entre  saberes e como foi esta costura no corpo do poema?

Costumo dizer que nós poetas, não somos aristocratas do espírito, que temos um corpo fundado na habitação do mundo e da natureza, é da contemplação ativa da natureza que nasce o desejo de sair da frente do poema que caracteriza os movimentos do pensamento de quem se dedica a escrever livros de poesia. O poema tem a mesma estatura ontológica de varrer o chão da cozinha e  limpar o banheiro.
As dimensões de estranhamento e entranhamento se entrelaçam na composição dos atos que nos colocam dentro do mundo, somos agentes do estranhamento que não conseguem viver sem o entranhamento no mundo, sem a  deambulação,  como se fôssemos infiltrados, agentes duplos infiltrados. Para mim é como se eu estivesse dentro de uma mata fechada abrindo clareiras com um facão, e o facão aqui é a metáfora de uma amálgama de intuição, vontade e pensamento.

4-) A ideia de Perfomance me veio à mente quando lia seu livro. Talvez porque o li como um corpo orgânico onde as partes estão plenamente assimiladas ao um complexo estudo sobre a alteridade, perfazendo o todo como um constructo. Como é seu trabalho visto por esta ótica e ao lado do poema quais são seus interesses? Vi que você tem um projeto musical também.

Gravei com três amigos desenhistas sonoros, o disco CONTRA O NAZISMO PSÍQUICO que  está disponível gratuitamente aqui. Para mim é impossível separar o poema do ato, a poesia da vida cotidiana, da chamada vida prática. A transcendência está justamente na realização do poema como ato, no viver a vida como um poema e nisto não há nenhum tipo de mistificação do poema. Na verdade, todo o meu trabalho é a tentativa de realizar o oposto disso.
Os trabalhos musicais, SCHERZO RAJADA, realizado com Kleber Nigro, Ismael Sendeski e Jean Rebeldia e seus desdobramentos: ARIEL E O DJIN com Jean Rebeldia e GODAR com Flavia Goa, existem porque possuem uma função de esticar a fala para zonas maiores de escuta, temos de ocupar outros campos, urbanísticos e cênicos também. O poema possui o corpo que possui a cidade e vice-versa.
” mergulha nos sonhos
ou um lema pode derrubar-te
(as árvores são as suas raízes
e o vento é o vento) “
e.e.cummings
Tradução de Elsa Lo

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